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Leia a íntegra do relatório da ação contra Bolsonaro no TSE
O corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Benedito Gonçalves, liberou hoje o relatório sobre uma ação que pode deixar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) inelegível. No documento, ele pediu que o julgamento seja marcado. Leia a íntegra:
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (11527) Nº 0600814-85.2022.6.00.0000 (PJe) – BRASÍLIA – DISTRITO FEDERAL
RELATOR: MINISTRO BENEDITO GONÇALVES
REPRESENTANTE: PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA (PDT) – NACIONAL
Advogados do REPRESENTANTE: ANA CAROLINE ALVES LEITAO – PE49456-A, MARA DE FATIMA HOFANS – RJ68152-A, MARCOS RIBEIRO DE RIBEIRO – RJ62818, ALISSON EMMANUEL DE OLIVEIRA LUCENA – PE37719-A, EZIKELLY SILVA BARROS – DF31903, WALBER DE MOURA AGRA – PE757-A
REPRESENTADOS: JAIR MESSIAS BOLSONARO, WALTER SOUZA BRAGA NETTO
Advogados do REPRESENTADO: ADEMAR APARECIDO DA COSTA FILHO – DF40989-A, MARINA FURLAN RIBEIRO BARBOSA NETTO – DF70829-A, MARINA ALMEIDA MORAIS – GO46407-A, EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO – DF17115-A, TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO – DF11498-A
Advogados do REPRESENTADO: ADEMAR APARECIDO DA COSTA FILHO – DF40989-A, MARINA FURLAN RIBEIRO BARBOSA NETTO – DF70829-A, MARINA ALMEIDA MORAIS – GO46407-A, EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO – DF17115-A, TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO – DF11498-A
RELATÓRIO
Trata-se de ação de investigação judicial eleitoral ajuizada pelo Diretório Nacional do Partido Democrático Trabalhista contra Jair Messias Bolsonaro, à época candidato à reeleição para o cargo de Presidente da República, e Walter Souza Braga Neto, candidato a Vice-Presidente da República, por suposta prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.
A ação tem como causa de pedir fática o alegado desvio de finalidade de reunião havida no dia 18/07/2022, na qual o primeiro réu, no exercício do cargo de Presidente da República, teria se utilizado de encontro com embaixadores de países estrangeiros para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação. Aponta-se que o discurso se insere em estratégia de campanha voltada para o descrédito ao sistema eletrônico de votação e que o evento contou com cobertura da Empresa Brasil de Comunicações (EBC), sendo amplamente divulgado nas redes sociais do candidato à reeleição, potencializando o efeito danoso das declarações proferidas na condição de Chefe de Estado.
A petição inicial contempla as seguintes alegações de fato (ID 157940943):
a) a ocorrência da reunião com os embaixadores é fato público e notório;
b) a tônica do evento foi a de questionamento da integridade do processo eleitoral e das instituições da República, “especificamente o TSE e seus Ministros”;
c) o Presidente candidato à reeleição, pessoalmente, afirmou a possibilidade de que os resultados do pleito pudessem ser comprometidos por fraudes no sistema de votação;
d) foi literalmente afirmado pelo primeiro investigado, entre outras informações falsas, que, em 2018, as urnas trocaram o dígito 7 pelo 3, transformando o voto no “17” (número de Jair Bolsonaro) em “13”; que o sistema brasileiro de votação é “inauditável”; que a apuração é realizada por empresa terceirizada e não pode ser acompanhada; que o TSE teria admitido que, em 2018, “invasores puderam […] trocar votos entre candidatos”;
e) no discurso, foram também feitas insinuações sobre suposta interferência eleitoral e defesa de “terroristas” por parte de Ministros do STF, bem como associado à “esquerda” o atentado sofrido por Bolsonaro em 2018;
f) o discurso obteve amplo alcance, pois a reunião foi transmitida pela TV Brasil, ligada à Empresa Brasil de Comunicação, e o vídeo foi veiculado nas redes sociais do primeiro investigado, alcançando, até a propositura da ação, aproximadamente 589.000 e 587.000 visualizações (respectivamente, no Facebook e no Instagram);
g) o então Presidente do TSE, Ministro Edson Fachin, agências de checagem e veículos de imprensa apontaram o caráter falso das afirmações lançadas contra o sistema de votação;
h) o discurso foi retirado da plataforma YouTube por iniciativa da empresa, que informou que “a política de integridade eleitoral do YouTube proíbe conteúdo com informações falsas sobre fraude generalizada, erros ou problemas técnicos que supostamente tenham alterado o resultado de eleições anteriores, após os resultados já terem sido oficialmente confirmados”;
i) o evento foi utilizado inegavelmente para fins eleitorais, pois o candidato à reeleição difundiu a gravação de discurso em que ataca a Justiça Eleitoral e o sistema eletrônico de votação, o que converge com estratégia de sua campanha.
Quanto à capitulação jurídica dos fatos, o autor sustenta que houve violação aos arts. 37, § 1º, da Constituição, 73, I, da Lei nº 9.504/97 e 22 da LC nº 64/1990, com base nas seguintes teses:
a) a conduta caracteriza desvio de finalidade no exercício do poder discricionário outorgado ao agente público, que foi utilizado para a consecução de fins eleitoreiros;
b) o uso da condição funcional de Presidente da República para, em manifesto desvio de finalidade, reunir embaixadores de países estrangeiros e difundir fake news contra o processo eleitoral amolda-se ao abuso de poder político;
c) foi também utilizado o aparato estatal em favor da candidatura, pois a reunião foi realizada no Palácio da Alvorada e, ainda, transmitida pela TV Brasil, ligada a empresa pública;
d) o alcance do ato praticado com desvio de finalidade foi amplificado pela divulgação do conteúdo sabidamente inverídico nas redes sociais;
e) “por figurar como Chefe de Estado, as falas do Senhor Jair Messias Bolsonaro têm capacidade de ocasionar uma espécie de efervescência nos seus apoiadores e na população em geral”, o que foi explorado, na hipótese, em “matéria de alta sensibilidade perante o eleitorado”;
f) conforme fixado no RO nº 0603975-98 (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021), a disseminação de ataques infundados ao processo eleitoral por meio de redes sociais caracteriza o uso indevido dos meios de comunicação;
g) a conduta possui alto grau de reprovabilidade e alcançou parcela significativa do eleitorado, revestindo-se de gravidade (aspectos qualitativo e quantitativo).
Por fim, no que diz respeito às provas, o autor:
a) inseriu na petição inicial links de internet e prints, destacando-se postagens nas redes sociais do primeiro investigado, transmissão do canal da TV Brasil no YouTube e sites de notícias, com vistas a conferir suporte à narrativa fática;
b) apresentou protesto genérico pela produção de provas;
c) protocolizou pendrive contendo o vídeo objeto de apuração da AIJE, o que foi certificado pela Secretaria (ID 157942663), que fracionou o conteúdo da mídia em seis partes sequenciais para juntada aos autos (ID 157957944).
Foi juntada procuração outorgada aos advogados que subscrevem a petição inicial (ID 157940944).
O investigante formulou requerimento de tutela de urgência, que foi deferido por meu antecessor, Min. Mauro Campbell Marques, para determinar a imediata retirada do conteúdo das redes sociais do primeiro investigado e da Empresa Brasil de Comunicação no Facebook, no Instagram e no YouTube, sob pena de multa de R$10.000,00 (dez mil reais). A decisão foi referendada pela Corte, à unanimidade, em 30/08/2022 (IDs 157951424 e 157984156).
No que diz respeito ao cumprimento da decisão liminar:
a) a Google Brasil declarou que o vídeo já havia sido tornado indisponível pelo responsável pela postagem, mas que foi possível à empresa adotar medidas para preservar o conteúdo (ID 157961443);
b) a Empresa Brasil de Comunicação informou que excluiu os conteúdos (ID 157961477);
c) o Facebook Brasil informou que excluiu o conteúdo e que procedeu à sua preservação, ainda que não tenha constado ordem expressa nesse sentido e que o material já tenha sido juntado aos autos, razão pela qual requer que seja declarado o integral cumprimento da ordem (ID 157962283).
Certificou-se nos autos, em 25/10/2022, o cumprimento do mandado de citação do primeiro investigado e a expedição de citação por correio para o segundo investigado (IDs 157961240 e 157961242).
Os investigados apresentaram contestação conjunta em 29/10/2022 (ID 157977291).
Suscitaram preliminares de:
a) exigência de formação de litisconsórcio passivo necessário com a União, ao argumento de que seu patrimônio jurídico foi afetado pela decisão de retirada de conteúdo produzido e publicado pela TV Brasil, canal vinculado à empresa pública EBC, o que acarreta a “incindibilidade da relação jurídica entre a União e os eventos descritos na petição inicial”;
b) incompetência da Justiça Eleitoral, uma vez que o ato descrito foi praticado pelo investigado na condição de Chefe de Estado, no regular desempenho da função privativa de manter relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII, CF/88), sem qualquer relação com a disputa entre candidatos.
No mérito, argumentam, quanto aos fatos, que:
a) na hipótese dos autos, foi praticado “ato de governo”, insuscetível de controle jurisdicional sob a ótica do “fim político” e da soberania, inexistindo ato eleitoral, uma vez que “[n]ão se cuidou de eleições! Não se pediu votos! Não houve ataque a oponentes! E não houve a apresentação comparativa de candidaturas!”;
b) o evento constou de agenda oficial, previamente publicizada, sendo inclusive expedido convite para o então Presidente do TSE, Min. Edson Fachin, “não sendo crível que o primeiro Investigado convidasse destacado membro da própria Justiça Especializada para testemunhar evento de conotação eleitoral”;
c) o “público-alvo da exposição”, formado por representantes de países estrangeiros, “sequer detinha cidadania e capacidade ativa de sufrágio”;
d) “uma leitura imparcial e serena” do discurso do primeiro investigado revela “falas permeadas de conteúdos técnicos, que buscam debater um tema importante (transparência do processo eleitoral), dispostas ao longo de mais de 1h (uma hora) de apresentação […] no afã de contrapor ideias e dissipar dúvidas sobre a transparência do processo eleitoral”;
e) “a má-fé de determinados setores da imprensa” levou a cobertura do evento a tratar “uma proposta de aprimoramento do processo democrático como se se tratasse de ataque direto à democracia”, quando na verdade se tratou de “um convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”;
f) trechos do discurso, que permitiriam sua adequada contextualização e compatibilidade com valores expressos pela OEA ao promover missões de observação eleitoral, “foram (maliciosamente) omitidos da inicial”;
g) o Tribunal de Contas da União fez recomendações para aprimoramento da segurança e da transparência do sistema eletrônico de votação (TC nº 014.328.2021-6) e o próprio TSE criou a Comissão de Transparência Eleitoral (Portaria TSE nº 578/2021), o que ilustra a licitude de apresentar “questionamentos (pontos duvidosos!), postos às claras”;
h) o Presidente do TSE, em 31/05/2022, realizou reunião com a comunidade internacional “a pretexto de fornecer ‘informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira’ […] a despeito de, como devido respeito, não estar legitimado constitucionalmente para tanto”, o que pode ser considerado um “evento assemelhado” ao discutido nos autos.
As teses jurídicas foram contrapostas da seguinte forma:
a) um ato de governo, por sua própria natureza, não pode ser enquadrado como abuso de poder político ou uso indevido dos meios de comunicação;
b) encontra-se resguardada pela liberdade de expressão “a exposição de pontos de dúvidas à comunidade internacional, em evento público constante de agenda oficial de Chefe de Estado soberano, no afã de aprimorar o processo de fiscalização/transparência do processo eleitoral”;
c) não há, nos autos, “provas contundentes do prejuízo ao processo eleitoral”, mas apenas “considerações vagas e imprecisas acerca da eventual gravidade do discurso apresentado aos embaixadores”;
d) “o debate público foi completo”, uma vez que, após a legítima exposição do ponto de vista do Chefe de Estado à comunidade internacional, o Presidente do TSE “emitiu nota pública reativa de esclarecimento” por meio da qual rebateu, com ampla publicidade, um total de 20 (vinte) pontos apresentados pelo Investigado”;
e) “qualquer possibilidade – ainda que remota e inventiva – de lesão à legitimidade das eleições foi prontamente estancada pela Justiça Eleitoral”, tendo em vista a ampla divulgação da nota do TSE pelos meios de comunicação, “com alcance social igual ou maior” e “com emprego de termos duros e cáusticos até mesmo para discursos jornalísticos”;
f) aplica-se à espécie a “teoria dos diálogos institucionais”, acolhida pela jurisprudência do STF (ADI nº 4650, Rel. Luiz Fux, DJ de 24/02/2016), que repudia a existência de instituição detentora do monopólio do sentido e do alcance das normas, devendo os pronunciamentos da Suprema Corte serem tomados como “última palavra provisória”.
A iniciativa probatória dos réus, nessa fase, consistiu em:
a) requerimento de oitiva de quatro testemunhas, a saber: Carlos Alberto Franco França, Ministro das Relações Exteriores; Flávio Augusto Viana Rocha, Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; Ciro Nogueira Lima Filho, Ministro-Chefe da Casa Civil; e João Henrique Nascimento de Freitas, Assessor-Chefe do Presidente da República;
b) prova documental composta por relatório de auditoria do TCU; relatório da análise, pelo TSE, das sugestões da Comissão de Transparência indicando acolhimento de 72,7% das propostas; Carta Democrática Interamericana (CID-OEA); notícias jornalísticas sobre a nota do TSE emitida após a reunião.
Foram juntadas procurações outorgadas pelos investigados aos subscritores da peça de defesa (IDs 157977297 e 157977298).
Com vistas a assegurar o pleno contraditório em torno das questões e requerimentos a serem examinados por ocasião do saneamento do processo, as partes foram intimadas, abrindo-se prazo comum de 3 dias para que o autor se manifestasse sobre as preliminares suscitadas na contestação e os réus justificassem o requerimento de prova testemunhal, indicando os pontos fáticos controvertidos a serem dirimidos pelos respectivos depoimentos (ID 158045220).
A réplica do autor acrescentou ao debate processual os seguintes argumentos (ID 158067068):
a) inexiste litisconsórcio passivo necessário com a União em razão do simples fato de a TV Brasil haver albergado o vídeo, sendo a remoção de conteúdos ilícitos decorrência do art. 9º-A da Res.-TSE nº 23.610/2019;
b) a Justiça Eleitoral é competente para examinar a difusão de fake news “intimamente ligadas ao pleito” e que foram praticadas com “desvirtuação da atuação legítima estatal para confortar ânimos eleitorais e escusos do Chefe de Estado”;
c) a “teoria do ato de governo” não pode ser utilizada para “lançar uma espécie de verniz imunizante sobre as falas do Senhor Jair Messias Bolsonaro, que não tem o poder de tudo poder”, sendo legítimo pleitear o controle jurisdicional sobre conduta que representa agressão à integridade do processo eleitoral;
d) o primeiro investigado é responsável por conferir à reunião viés eleitoral, estando configurada a hipótese de abuso de poder político, ante o uso da condição funcional, em manifesto desvio de finalidade com impacto sobre as Eleições 2022.
Por sua vez os réus justificaram o requerimento de prova testemunhal nos seguintes termos (ID 158072327):
a) é necessário expor a dinâmica do evento questionado, falas e comentários dos presentes;
b) o rol de testemunhas denota “a possibilidade de conhecimento dos fatos sequiosos de esclarecimento, frente às relevantes funções desempenhadas por cada uma das pessoas indicadas”;
c) a prova não ostenta caráter protelatório, “inclusive porque postulada até como modicidade, eis que não postulado, como de direito, sequer o número máximo de 06 (seis) testemunhas, previsto em lei (art. 22, V, da LC nº 64/90)”.
Proferiu-se, então, decisão de saneamento e organização do processo, na qual foram dirimidas questões processuais, fixados os pontos controvertidos e, com base nestes, apreciados os requerimentos de prova. Destaco da referida decisão (ID 158487960):
a) registro da formação válida do processo, com ênfase para o comparecimento espontâneo do segundo investigado ao apresentar defesa conjunta antes da juntada do aviso de recebimento (art. 239, § 1º, do CPC);
b) registro da regularidade representação das partes, por advogadas e advogados aos quais foram outorgadas procurações;
c) declaração do devido e tempestivo cumprimento da decisão liminar em que se ordenou às redes sociais e à TV Brasil remover conteúdos no prazo assinalado e conservá-los durante o curso da ação;
d) constatação da tempestividade dos atos processuais até então práticos, razão pela qual foram analisadas todas as manifestações e documentos apresentados;
e) rejeição das preliminares de incompetência da Justiça Eleitoral e de ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário com a União, ambas suscitadas pelos réus;
f) delimitação das questões de fato, a acarretar a estabilização da demanda (art. 329, II, do CPC), sem prejuízo da admissão, à controvérsia, da obrigatória consideração de fatos supervenientes (art. 493 do CPC) ou diretamente relacionados com a causa de pedir já estabilizada, uma vez que “[n]ão decorre dessa medida a blindagem do debate processual contra alegações e documentos que possam influir no julgamento da causa”, apresentando-se os “contornos gerais da matéria controvertida sobre a qual recairá a prova” nos seguintes termos:
“Na hipótese dos autos, o substrato fático que motivou a propositura da AIJE é a realização de reunião do Presidente da República com embaixadores de países estrangeiros no Palácio da Alvorada, no dia 18/07/2022, bem como sua ampla divulgação, pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro representado. Na ocasião, o primeiro investigado realizou exposição em que abordou o sistema eletrônico de votação brasileiro e fez referência a Ministros do STF.
Esses fatos quedaram incontroversos ao final da fase postulatória. A autora juntou mídia contendo vídeo da realização do discurso. Não houve objeção, por parte dos réus, à autenticidade ou integridade do material.
A controvérsia fática recai sobre as circunstâncias em que a reunião foi realizada e em que ocorreu sua divulgação nas redes.
O autor afirma que o primeiro réu, atuando com desvio de finalidade, utilizou-se do encontro com chefes de missões para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação e fazendo insinuações sobre a conduta de Ministros que presidiram o TSE. Além disso, argumenta que o discurso tem aderência à estratégia de campanha do candidato à reeleição para mobilizar suas bases por meio de fatos sabidamente falsos, devendo-se levar em conta que a transmissão pelas redes sociais fez com que a mensagem chegasse ao eleitorado.
De sua parte, os investigados refutam qualquer relação entre o evento e o pleito de 2022. Defendem que a reunião se ateve à sua finalidade pública, uma vez que, segundo sua narrativa, o Presidente da República, no exercício da liberdade de expressão, expôs seu ponto de vista sobre o sistema de votação para convidados que nem mesmo eram eleitores. Ressaltam que a fala fez parte de um diálogo institucional sobre tema de interesse público, devendo ser lida em cotejo com anterior evento do TSE (em que o Ministro Edson Fachin, então seu Presidente, se dirigiu a membros da comunidade internacional) e com nota em que o tribunal rebateu as afirmações feitas por Jair Bolsonaro na reunião do Palácio do Alvorada.”
g) delimitação das questões de direito, com a seguinte fundamentação:
“Embora seja de rigor afirmar que o réu se defende dos fatos e não da qualificação jurídica dada a estes, é certo que as particularidades das ações eleitorais exigem que, ao ter início a fase instrutória, tenha-se plena ciência das questões de direito que serão relevantes para o deslinde do feito. Isso porque, em Direito Eleitoral, uma mesma conduta pode ser capitulada sob a ótica de ilícitos diversos, com consequências distintas.
Tais ilícitos possuem elementos típicos próprios que influem na iniciativa probatória das partes. Por exemplo, o que é suficiente para demonstrar que foi realizada propaganda irregular, punível com multa mediana, pode não bastar para a condenação por conduta vedada ou por uso indevido de meios de comunicação. Do mesmo modo, e com especial interesse para a AIJE, cada modalidade abusiva possui características próprias, que devem ser levadas em conta ao longo da instrução.
No caso vertente, as teses jurídicas deduzidas pelo autor encontram-se bem delimitadas. Imputa-se aos investigados a prática de abuso de poder político, ante o alegado desvio de finalidade no exercício de suas funções de Presidente da República e no uso de bens públicos, e de uso indevido de meios de comunicação, que teria sido perpetrado pela utilização de redes sociais, inclusive de empresa pública, para difundir conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação.
Ao longo da exposição, o autor menciona ainda a violação aos arts. 37, § 1º da Constituição, 73, I, da Lei 9.504/97 e 9º-A da Res.-TSE 23.610/2019, que descrevem condutas passíveis, em tese, de se amoldar às práticas abusivas descritas no art. 22 da LC 64/90.
Ao refutar a configuração dos ilícitos em comento, os investigados, além de se oporem à ocorrência do desvio de finalidade e do uso das redes para divulgar fake news, afirmam que os fatos não são graves o suficiente para afetar os bens jurídicos tutelados pela AIJE. Em particular, alegam que a publicação da nota do TSE, com ampla repercussão midiática, teria neutralizado eventuais impactos da fala dirigida pelo primeiro investigado aos embaixadores.
Assim, a gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo (grau de reprovabilidade) e quantitativo (repercussão no contexto do pleito específico) é ponto controvertido cuja análise deverá ser balizada pelos elementos probatórios coligidos aos autos.”
h) cotejo dos requerimentos de prova com os pontos controvertidos, sob a ótica da pertinência e utilidade, o que conduziu ao deferimento da oitiva de todas as quatro testemunhas arroladas pelos réus, justificada como meio para conhecimento da dinâmica do evento, “falas e comentários dos presentes”, com destaque para a importância de que os fatos fossem descritos sob a ótica de autoridades que desempenhavam “relevantes funções” no governo findo em 2022;
i) designação de audiência para oitiva das testemunhas;
j) submissão da rejeição das preliminares suscitadas pelos investigados a referendo em plenário, tendo em vista que, caso acolhidas, poderiam levar à extinção do feito, antecipando-se, para a mesma oportunidade a realização de sustentação oral sobre a matéria.
A rejeição das preliminares foi referendada, por unanimidade, na sessão de 13/12/2022. Transcrevo o teor da ementa do acórdão respectivo (ID 158550654):
“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. QUESTÕES EM TESE APTAS A ACARRETAR DECISÃO TERMINATIVA. COLEGIALIDADE. RACIONALIDADE PROCESSUAL. IMEDIATA SUBMISÃO À CORTE.
ATO DE GOVERNO. ALEGADO DESVIO DE FINALIDADE EM FAVOR DE CANDIDATURA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. UNIÃO. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. ILEGIMIIDADE PASSIVA. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. INEXISTÊNCIA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA REFERENDADA.
1. Trata-se de ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, ilícitos supostamente perpetrados em decorrência do desvio de finalidade da reunião do Presidente da República com embaixadores de países estrangeiros, a fim de favorecer sua candidatura à reeleição.
2. Concluída a fase postulatória, proferiu-se decisão de saneamento e organização do processo, com o objetivo assegurar que a fase instrutória seja iniciada em ambiente de estabilidade jurídica, resolvidas todas as questões pendentes.
3. No decisum, foram rejeitadas duas preliminares suscitadas pelos investigados.
4. Como regra geral, as questões resolvidas por decisão interlocutória, no procedimento do art. 22 da LC nº 64/90, não são recorríveis de imediato. Nessa hipótese, o reexame pelo Colegiado fica diferido para a sessão em que for julgado o mérito e somente ocorre se a parte o requerer em alegações finais (art. 19, Res.-TSE nº 23.478/2016; art. 48, Res.-TSE nº 23.608/2019).
5. A aplicação da regra às ações de investigação judicial eleitoral foi reafirmada no julgamento da AIJE nº 0601969-65 (Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 08/05/2020), quando o TSE declarou preclusa a possibilidade de a parte, silente nas alegações finais, rediscutir decisão em que o Relator indeferiu provas.
6. A sistemática prestigia a celeridade, mas, para que atinja seu objetivo, deve ser aplicada sempre com respeito à racionalidade processual. Desse modo, não se justifica que toda a instrução seja desenvolvida enquanto está pendente de exame pela Corte questão preliminar capaz de, em tese, levar à extinção do processo sem resolução do mérito.
7. Nessa linha, é conveniente ao bom andamento deste feito e à estabilidade do processo eleitoral que a Corte desde logo avalie se, tal como se concluiu na decisão saneadora, ação proposta é efetivamente viável.
PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. REJEITADA.
8. A Justiça Eleitoral é competente para apurar desvios de finalidade de atos praticados por agentes públicos, inclusive por Chefe de Estado, quando da narrativa se extrair que o mandatário se valeu do cargo para produzir vantagens eleitorais para si ou terceiros. Entender o contrário seria criar uma espécie de salvo-conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos, justamente, no exercício do feixe de atribuições mais sensível do Presidente da República.
9. Na hipótese dos autos, os requisitos para a definição da competência do TSE foram devidamente delimitados pela parte autora. Narra-se que o Presidente da República, utilizando-se de seu cargo, convocou reunião com embaixadores de países estrangeiros, mas, agindo com desvio de finalidade, teria passado a atacar a integridade do sistema eleitoral, em estratégia amoldada à de sua campanha, beneficiando-se, ainda, da ampla repercussão da transmissão do evento pela TV Brasil.
10. Os argumentos trazidos pelos investigados, no sentido de que atos de governo não se sujeitam a controle jurisdicional, pressupõem que inexista o desvirtuamento para fins eleitorais, matéria a ser examinada no mérito.
PRELIMINAR DE NÃO FORMAÇÃO DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO COM A UNIÃO. REJEITADA.
11. É pacífica a jurisprudência no sentido da impossibilidade de pessoas jurídicas figurarem no polo passivo da AIJE. Nos intensos debates desta Corte sobre o tema do litisconsórcio passivo necessário, essa premissa jamais foi alterada. O que se vem discutindo é se deve, ou não, ser exigida a inclusão, no polo passivo, dos responsáveis pela prática abusiva – portanto, de pessoas físicas passíveis de suportar inelegibilidade. Precedentes.
12. À luz de todo o arcabouço doutrinário e jurisprudencial para preservar a isonomia entre candidatos à reeleição e seus adversários, recusa-se a ideia de que haja uma “relação jurídica incindível” entre a União e o Presidente da República a impor que o ente federado litigue, na AIJE, ao lado do candidato.
13. Além da indevida mescla de interesses públicos e privados que deriva dessa proposta, seu acolhimento comprometeria, em definitivo, a celeridade e a economicidade, ao forçar a atuação processual de entes federados, autarquias, empresas públicas e fundações em toda e qualquer ação em que se apure finalidade eleitoral ilícita de atos praticados em nome do Poder Público.
14. Assim, mesmo que a União e a Empresa [Brasil] de Comunicação entendessem que a remoção de vídeo gravado pela TV Brasil acarretou prejuízo ao seu patrimônio, não se tornariam litisconsortes necessários dos investigados. Ressalte-se que, no caso, nem mesmo isso ocorreu, pois aquelas pessoas jurídicas de direito público não adotaram qualquer medida voltada para assegurar a veiculação do material.
CONCLUSÃO.
15. Rejeitadas as preliminares suscitadas pelos investigados, conclui-se pela viabilidade da AIJE proposta.
16. Decisão interlocutória referendada.”
A primeira audiência para oitiva de testemunha foi realizada em 19/12/2022, quando foi tomado o depoimento de Carlos Alberto Franco França, então Ministro das Relações Exteriores (IDs 158533126 e 158533127).
Em 13/01/2023, o autor promoveu a juntada de documento novo, consistente em imagens de minuta de decreto de Estado de Defesa, cujo original havia sido apreendido, no dia anterior, pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres – ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro – durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF. Requereu, ainda, que fosse solicitadas “cópias oficiais dos documentos pertinentes à busca e apreensão em apreço, especificamente os que dizem respeito à minuta do decreto descrito em linhas anteriores” (ID 158553894).
Os requerimentos foram deferidos em decisão interlocutória na qual expressamente consignada a aderência do fato superveniente à demanda em curso, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade. Destaco trecho em que foi explicado o ponto (ID 158554507):
“Tem-se, em síntese, que as partes controvertem sobre: a) a relação entre o evento realizado em 18/07/2022 e as eleições ocorridas no mesmo ano; b) caso estabelecida essa correlação, a gravidade da conduta, no aspecto qualitativo (o discurso em si) e quantitativo (repercussão no contexto eleitoral).
Com base na fixação da matéria fática e jurídica controvertida, já se deferiu, nos presentes autos, prova testemunhal requerida pela parte ré. Note-se que essa prova foi pleiteada, a despeito de se ter acesso à íntegra do discurso proferido por Jair Bolsonaro, porque os investigados sustentaram a relevância de expor outros fatores relativos à dinâmica do evento, tais como “falas e comentários dos presentes” e, ainda, a ótica de autoridades que desempenhavam “relevantes funções” no governo.
A justificativa mostrou aderência à tese defensiva que se dirige ao aspecto qualitativo da gravidade, uma vez que, segundo os investigados, as circunstâncias do evento, a serem relatadas pelas testemunhas, demonstrariam a sua regularidade, vez que estaria inserido em um “diálogo institucional” entre o TSE e o Poder Executivo. Desse modo, deferi a prova, consignando que “[n]a presente ação, constata-se que a disputa de narrativas tem por objeto o contexto do evento (reunião com embaixadores) e, não, sua existência.”
De igual forma, constato que os fatos ora trazidos a juízo pela parte autora possuem aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade.
Conforme se observa, a tese da parte autora, desde o início, é a de que o discurso realizado em 18/07/2022 não mirava apenas os embaixadores, pois estaria inserido na estratégia de campanha do primeiro investigado de “mobilizar suas bases” por meio de fatos sabidamente falsos sobre o sistema de votação. Na petição ora em análise, alega que a minuta de decreto de Estado de Defesa, ao materializar a proposta de alteração do resultado do pleito, “densifica os argumentos que evidenciam a ocorrência de abuso de poder político tendente promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral”.
Constata-se, assim, a inequívoca correlação entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada, uma vez que a iniciativa da parte autora converge com seu ônus de convencer que, na linha da narrativa apresentada na petição inicial, a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotado de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições e, assim, configurar abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.”
A decisão foi objeto de pedido de reconsideração, no qual os réus afirmaram que foram violadas a estabilização da demanda e a consumação de decadência (ID 158557843). Após ouvir a parte autora (ID 158560428), indeferi o pedido, mantendo a decisão por seus fundamentos, e fixei orientação a ser aplicada às AIJEs das Eleições 2022 em situações semelhantes (ID 158622380).
Tendo em vista o caráter prejudicial das questões suscitadas, cujo acolhimento poderia impactar na instrução, remeti ao Plenário o exame dos fundamentos adotados e da orientação fixada. Ambos os pontos foram referendados na sessão de 14/02/2023, o que constou em acórdão assim ementado (ID 158704139):
“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. JUNTADA DE DOCUMENTO NOVO. FATOS SUPERVENIENTES. ADMISSIBILIDADE. DESDOBRAMENTO DE FATOS QUE COMPÕEM A CAUSA DE PEDIR. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. DECADÊNCIA. VIOLAÇÃO À ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA. INOCORRÊNCIA. QUESTÕES PREJUDICIAIS REJEITADAS. DECISÃO REFERENDADA.
1. Trata-se de decisão em que, rejeitadas as prejudiciais de decadência e de violação à estabilização da demanda, indeferiu-se pedido de reconsideração formulado contra a admissibilidade de documento novo juntado aos autos durante a fase de instrução.
2. Nesta AIJE, apura-se abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, ilícitos supostamente praticados em reunião de 18/07/2022 ocorrida no Palácio da Alvorada, quando o então Presidente da República, primeiro investigado, proferiu discurso lançando suspeitas de fraude nas urnas eletrônicas e acusações de parcialidade de Ministros do TSE. O evento contou com a presença de embaixadores de países estrangeiros e foi transmitido pela TV Brasil e nas redes sociais do candidato à reeleição.
3. A causa de pedir da AIJE é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento e os descreva em minúcias.
4. Na hipótese, a causa de pedir contempla a imputação de que o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em uma estratégia de campanha do primeiro réu, de difundir fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação, para mobilizar seu eleitorado por força de grave “desordem informacional” atentatória à normalidade do pleito.
5. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar “diálogo institucional” com o TSE, afirmando ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública do tribunal.
6. Diante disso, na decisão de organização e saneamento do processo, consignou-se que os fatos constitutivos (o evento, o discurso e seu conteúdo) são incontroversos e que as partes disputam a narrativa sobre o significado e o impacto eleitoral do episódio. Ressaltou-se que, em matéria de abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais.
7. O documento novo ora trazido aos autos consiste em minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, no dia 12/01/2023, durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.
8. É inequívoco que o fato de o ex-Ministro da Justiça do governo do primeiro investigado ter em seu poder uma proposta de intervenção no TSE e de invalidação do resultado das eleições presidenciais possui aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação entre o discurso e a campanha e ao aspecto quantitativo da gravidade.
9. A decadência obsta a dedução de ilícitos inteiramente novos, sendo fator de estabilidade política e jurídica. No entanto, apresentada a demanda de modo tempestivo, os fatos supervenientes que guardem relação com a causa de pedir, mesmo que não alegados pelas partes, devem ser obrigatoriamente considerados no julgamento (art. 493, CPC; art. 23, LC 64/90).
10. Desse modo, não se pode interpretar a estabilização da demanda como um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica. Essa ideia acarreta um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.
11. Ressalte-se que, no caso dos autos, o que a autora pretende discutir são eventos que se conectam a partir do eixo central da narrativa, segundo a qual o discurso na reunião com embaixadores mirava efeitos eleitorais ilícitos. O próprio teor do discurso do Presidente, que livremente escolheu os tópicos que desejava abordar, oferece uma clara visão sobre o fluxo de eventos – passados e futuros – que podem, em tese, corroborar a imputação da petição inicial.
12. Ao lado dessas considerações gerais, deve-se ter em conta que o resultado das eleições presidenciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornou alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.
13. Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é, ou não, desdobramento de condutas em apuração nas diversas ações. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação entre as causas de pedir e a realidade fenomênica em que se inserem.
14. Os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão.
15. Tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.
16. Orientação a ser aplicada em situações semelhantes, no sentido de que a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.
17. Mantido o indeferimento do pedido de reconsideração.
18. Decisão interlocutória referendada.”
No ínterim entre a rejeição do pedido de reconsideração e seu referendo em plenário, foi realizada a segunda audiência para oitiva de testemunhas arroladas pelos réus. Em 08/02/2023 (ID 158628231), foram ouvidos Ciro Nogueira Lima Filho, ex-Ministro Chefe da Casa Civil (ID 158629232), e Flávio Augusto Viana Rocha, ex-Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência (ID 158628233). Os investigados desistiram da oitiva de João Henrique Freitas (ID 158626938), inicialmente prevista para a mesma data.
Concluída a produção da prova requerida na fase postulatória, sobreveio decisão em que determinei diligências complementares, de ofício, nos termos dos incisos VI a IX do art. 22 da LC nº 64/1990 (ID 158764809).
No decisum, ressaltei que os citados dispositivos impõem ao relator da AIJE assegurar, de ofício ou a requerimento das partes, o esgotamento da instrução probatória, mediante requisições, oitivas e outras providências que atendam ao interesse público na elucidação de possíveis práticas abusivas. Ponderei a necessidade de se atentar para o caráter complementar dessa atividade, preservando a objetividade da apuração. Ainda, fiz referência à necessidade de que o art. 23 da LC nº 64/1990 seja considerado regra de instrução, reconhecendo a indispensabilidade de que, diante de fatos e circunstâncias relevantes identificados pelo magistrado, sejam estes previamente apresentados, concedendo-se às partes oportunidade para se pronunciar a respeito.
Com essas balizas, procedi à análise das providências a serem adotadas, extraindo do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022 e das circunstâncias da realização e da divulgação do evento o referencial para avaliar quais diligências são efetivamente relevantes ao deslinde do feito. Consignei, com apoio em transcrição literal e contínua do discurso dirigido aos embaixadores de países estrangeiros, que:
a) as críticas dirigidas contra o sistema eletrônico de votação tiveram como fio condutor a reiterada referência a Inquérito no qual a Polícia Federal teria concluído que hackers tiveram acesso a “diversos códigos-fonte” e teriam sido capazes de “alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro”;
b) a fala possui marcadores cronológicos, que conectam passado, momento presente e projeções para o futuro:
b.1) a alegada fraude ocorrida em 2018, passando pela advertência de que não poderia ter havido eleições em 2020 antes da “apuração total” do ocorrido;
b.2) a própria urgência de endereçar a mensagem aos embaixadores de países estrangeiros, na iminência do período eleitoral de 2022; e, por fim,
b.3) a enfática reivindicação, somente compreensível nesse arco narrativo alarmista, de que as Eleições 2022 fossem “limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população”;
c) fatos relacionados ao primeiro daqueles marcadores – “b.1” supra – passaram-se em 2021, quando teve início no TSE o Inquérito Administrativo nº 0600371-71, instaurado pelo Corregedor-Geral Eleitoral para apurar condutas praticadas em lives conduzidas pelo então Presidente Jair Messias Bolsonaro e que, em tese, poderiam caracterizar disseminação de informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação com potenciais danos às Eleições 2022;
d) constam do referido Inquérito Administrativo degravações de lives realizadas em:
d.1) 29/07/2021, em que Jair Messias Bolsonaro dividiu a transmissão com Eduardo Gomes da Silva e, ao final, com o então Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Gustavo Torres;
d.2) 04/08/2021, ocasião em que o primeiro investigado e o Deputado Filipe Barros, com transmissão da Jovem Pan durante o programa “Os Pingos nos Is”, divulgaram Inquérito da Polícia Federal e, com base nele, teceram afirmações sobre adulteração de votos nas Eleições 2018, discurso que voltou a ser ventilado perante os embaixadores em 2022, com a declaração “eu tive acesso a esse inquérito no ano passado [2021] e divulguei”;
d.3) 12/08/2021, após a rejeição da “PEC do voto impresso”, em que o então Presidente volta a afirmar que hackeamento haveria atingido o computador “que conta os votos, que faz a apuração” e cogita que “o acordo com esses hackers seria de desviar 12 milhões de votos do candidato Jair Messias Bolsonaro, sumir com 12 milhões de votos”, ao mesmo tempo em que declara: “não tenho provas […], mas alguma coisa aconteceu”;
e) os depoimentos das três testemunhas da defesa até então ouvidas, que declararam não ter envolvimento na realização do evento de 18/07/2022, seja pessoalmente ou por meio dos órgãos sob sua gestão (Casa Civil, Ministério das Relações Exteriores e Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência), contrastou com o relevo dos cargos desempenhados e, mais especificamente, com expressa referência de Jair Messias Bolsonaro no sentido de que Carlos Alberto Franco França, seu Ministro das Relações Exteriores, encaminharia “extrato” da reunião às Embaixadas e disponibilizaria a eventuais interessados a íntegra do Inquérito da Polícia Federal;
f) oportuna a oitiva de pessoas que foram ouvidas no IA nº 0600371-71, a fim de que pudessem ser inquiridas em juízo e com respeito ao contraditório;
g) cabível, portanto, a determinação das seguintes diligências complementares, de ofício:
g.1) juntada de documentos, extraídos do Inquérito nº 0600371-71;
g.2) expedição de ofício ao Ministro-Chefe da Casa Civil, requisitando-se informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio da Alvorada em 18/07/2022, solicitando-lhe, para tanto, que, além da consulta a seus registros, estenda a comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, à Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência, à Assessoria de Cerimonial e demais órgãos acaso envolvidos na organização do evento, em prazo hábil para a consolidação; e
g.3) oitiva de testemunhas, para deporem sobre fatos devidamente delimitados, nos seguintes termos:
“a) Anderson Gustavo Torres, ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, a respeito de sua contribuição e participação na live de 29/07/2021, seu eventual envolvimento na reunião de 18/07/2022 e circunstâncias relativas ao decreto de Estado de Defesa apreendido em sua residência, no dia 12/01/2023:
b) Eduardo Gomes da Silva, Coronel reformado, a respeito de sua contribuição e participação na live de 29/07/2021;
c) Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro, servidores da Polícia Federal, para tratar sobre as circunstâncias em que foram envolvidos na live de 29/07/2021″.
Na decisão, ainda determinei a juntada da transcrição dos depoimentos colhidos nas audiências de 19/12/2022 e 08/02/2023, devendo os documentos ser gravados com sigilo até o julgamento de mérito, permitindo-se acesso estritamente às partes e ao Ministério Público Eleitoral. As transcrições constam dos IDs 158766494, 158766495 e 158766496.
Concedeu-se vista dos documentos às partes e ao MPE, permitida a formulação de novos requerimentos de provas, compatíveis com a etapa processual em curso. Quanto ao ponto, em atenção ao caráter complementar dessas diligências, adverti as partes de que requerimentos protelatórios estariam sujeitos a multa, nos seguintes termos:
“Adianto que os requerimentos acaso formulados serão analisados de forma rigorosa, somente se deferindo aqueles que tenham sua pertinência e utilidade objetivamente demonstrada, a partir da estrita vinculação aos fatos específicos que se pretende provar, e que não estejam cobertos pela preclusão. Nesse sentido, advirto as partes, desde logo, que, caso evidenciado o caráter protelatório de qualquer requerimento, inclusive em virtude da abstração ou amplitude da justificativa da prova, será aplicada multa por litigância de má-fé, em montante proporcional à circunstância concreta.”
(Com destaques no original)
Em 16/03/2023, realizou-se a terceira audiência de oitiva de testemunhas, sendo ouvidos Anderson Gustavo Torres, ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública (ID 158835189), e os policiais federais Ivo de Carvalho Peixinho (ID 158835190) e Mateus de Castro Polastro (ID 158835192), que haviam sido convocados ao Palácio do Planalto para reunião que precedeu a live de 29/07/2021. Eduardo Gomes não foi ouvido, uma vez que não foi possível localizá-lo nos endereços que constam no Cadastro Eleitoral (IDs 158774250 e 158789869).
No que diz respeito à iniciativa de produção de diligências complementares, a Procuradoria-Geral Eleitoral e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) expressaram seu desinteresse na produção de outras provas (IDs 158786167 e 158794439).
Por sua vez, os investigados requereram (ID 158797364):
a) a oitiva de testemunhas, justificada com base em fatos específicos relacionados à causa que poderão por elas ser elucidados: a.1) Filipe Barros, Deputado Federal que “foi relator da PEC que tratava do Voto Impresso (id. 158764856, p. 12) e participou, ativamente, com o Presidente e Investigado Jair Messias Bolsonaro, no programa ‘Pingo nos is'”, sendo ainda “quem, primeiramente, obteve o acesso ao Inquérito Policial 1361/2018-4/DF”; a.2) Guilherme Fiuza, Augusto Nunes e Ana Paula Henkel, “jornalistas responsáveis pela condução do programa ‘Pingos nos is’, que poderão elucidar as reais e efetivas razões de se realizar o programa com esse tema específico”, por serem as pessoas que “efetivamente participaram da entrevista realizada com o Investigado Jair Bolsonaro em 04/08/2021, e, por conseguinte, poderão contribuir com efetivos esclarecimentos sobre o contexto em que surgiu o interesse jornalístico sobre o tema versado no Inquérito Policial 1361/2018-4/DF, sobre as atitudes dos Investigados face aos fatos e sobre os bastidores do programa, não capturados, por óbvio, por meio de simples degravação”; e a.3) o Ex-Deputado Federal Major Vitor Hugo, que “esteve presente na transmissão e poderá, destarte, esclarecer contexto, sentido, motivação e desenvolvimento da live”, acrescendo que “face à vedação de depoimento pessoal do primeiro Investigado em sede de AIJE, a testemunha mencionada é a única testemunha habilitada, em tese, a prestar os esclarecimentos ora tidos como essenciais para a comprovação da tese principal da defesa”;
b) a requisição de documentos, destinados a “demonstrar que as preocupações do investigado Jair Messias Bolsonaro não eram infundadas, mas eram decorrência (i) de investigação efetiva levada a cabo pela Polícia Federal, em atenção a pedido formulado por este C. TSE e (ii) da fiscalização desenvolvida pelo Tribunal de Contas da União sobre o tema das eleições”, a saber:
b.1) à Delegacia da Polícia Federal em Brasília, dos termos de depoimentos colhidos ao longo das investigações no Inquérito Policial 1361/2018-4/DF e, se existente, do relatório final produzido;
b.2) ao Supremo Tribunal Federal:
b.2.1) da complementação das cópias do Inquérito 4878/DF, contendo os desdobramentos processuais da investigação das circunstâncias de divulgação do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF desde 21/02/2022;
b.2.2) de cópia da Petição nº 10.477/DF, que se refere à apuração de notícia crime a respeito do mesmo fato que compõe a causa de pedir desta AIJE e que conta com parecer, da PGR, pelo arquivamento; e
b.2.3) de “informações relativas a referida ‘minuta de decreto de Estado de Defesa’, especialmente no que concerne ao resultado dos exames periciais (contendo os nomes das pessoas com digitais em referido documento) e aos termos dos depoimentos prestados pelo Senhor ANDERSON TORRES no âmbito das investigações realizadas naquela Corte”.
Na mesma oportunidade, os investigados interpuseram agravo interno contra a decisão que determinou, de ofício, a realização de diligências complementares, sustentando que (ID 158797358):
a) o recurso é cabível, “mesmo diante da regra geral de recorribilidade diferida quanto a decisões interlocutórias em matéria eleitoral”, pois aos processos originários do tribunal deve ser aplicado o art. 36, § 8º, do Regimento Interno do TSE, para permitir a insurgência imediata;
b) a decisão agravada não atendeu às balizas fixadas na ADI nº 1082/STF a respeito da instrução suplementar permitida ao Corregedor e promoveu “indevida correção na deficiente atuação processual do Autor, determinando diligências jamais requeridas pelo Autor, em adiantado momento processual, mesmo que tais providências pudessem ter sido pleiteadas, a tempo e modo, eis que não derivam de efetivo ‘achado fortuito’ nem são alusivas a elementos ocorridos no futuro (vg, lives e programa jornalístico do ano de 2021)”;
c) a requisição de documentos dirigida à Casa Civil envolveu “intimação de Ministro do Presidente Lula (grupo político adversário ferrenho dos investigados!), para empreender elástica atuação probatória prospectiva, em sua pasta e em quaisquer outros órgãos federais, na perspectiva ostensiva de aferir a ‘participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio [da Alvorada], em 18/07/2022”, o que caracteriza “delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação”, devendo-se observar que:
c.1) a oitiva das testemunhas arroladas pela defesa na contestação, devidamente compromissadas, comprovou “o não envolvimento direto dos órgãos de maior pertinência temática ao evento (Casa Civil, MRE e SAJ)”, o que é relevante para afastar a imputação de abuso de poder político e não pode ser reputado “instrução defeituosa” a ser suprida pela requisição de documentos à Casa Civil;
c.2) a solicitação, genérica e abrangente, de localização de suposta (e inexistente) prova documental”, dirigida “ao atual Ministro-Chefe da Casa Civil do governo petista – que, à época do ocorrido, longe dos fatos, era Governador do Estado da Bahia”, disparou “a consulta a documentos de diversos órgãos governamentais e a consolidação unilateral e casuística de seus (pretendidos) achados, em relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos”, possibilitando “ao adversário político a engenhosa apresentação analítica de eventuais achados fortuitos”; e
c.3) “a prerrogativa de realização de verdadeira devassa, em arquivos federais, abre ensejo à edição conveniente de elementos probatórios e viabiliza, inclusive, o descarte seletivo de provas desfavoráveis à sanha persecutória, com mácula indelével à imparcialidade na construção da materialidade da instrução probatória”;
d) em decisão anterior, que admitiu a juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa, consumou-se tratamento anti-isonômico às partes, uma vez que “restou facultado ao autor juntar quaisquer documentos que repute como pertinentes a amparar sua pretensão, estando estes desde já admitidos, sem necessidade de decisão interlocutória que homologue o seu (tardio) ingresso”, privilégio que alcançaria, “provas ainda nem produzidas, de fatos desdobráveis ad aeternum, e que não orientaram a linha defensiva vertida na contestação, bem como o requerimento de provas, considerando os fatos efetivamente expostos na exordial, a tempo e a modo”;
e) a citada decisão ainda violou o contraditório substancial, pois em lugar de reabrir o prazo de contestação de cinco dias, ou de assegurar prazo equivalente a este com base no art. 329 do CPC, concedeu-se três dias para a manifestação;
f) também houve violação ao contraditório durante a sessão de 14/02/2023, uma vez que se negou aos réus a oportunidade de realizar sustentação oral relativo ao pedido de reconsideração, em contrariedade a determinação expressa do Relator;
g) a determinação da oitiva de Anderson Torres, “para além de impertinente, ostenta pouca ou nenhuma utilidade processual”, tanto porque a testemunha se encontra sob a custódia do Estado e amparada pelo princípio da não autoincriminação, quanto porque o depoimento sobre sua participação em live de 29/07/2021, ocorrido mais de um ano antes da eleição, já foi prestado à Corregedoria-Geral Eleitoral;
h) embora a petição inicial já contivesse referência à live protagonizada pelo primeiro investigado em 2021, a parte autora não requereu a produção de provas em relação ao fato, quer no ajuizamento da AIJE ou ao pleitear a juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa;
i) a determinação de juntada de documentos oriundos do Inquérito Administrativo nº 0600371-71 não atendeu aos limites do art. 23 da LC nº 64/1990, por referir-se a fatos que não se inserem ao conceito doutrinário de “fato simples”;
j) a advertência de que eventuais requerimentos de prova de caráter protelatório ensejariam multa por litigância de má-fé contém “tom de verdadeira ameaça às partes”, que atenta contra as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, bem como contra a prerrogativa profissional da advocacia, “a partir de inusual advertência de multa (já aplicada em valores verdadeiramente milionários!), acabando por desestimular a atuação das partes e do advogados no processo, receosos de reprimenda desproporcional e incompatível com os fins que efetivamente justificariam penalidades inibitórias de comportamento protelatório dos agentes processuais”.
Com esses argumentos, requereram:
a) “a revogação das diligências complementares determinadas, diante do desacerto na utilização das prerrogativas concedidas pela LC nº 64/1990, fora das balizas ditadas pela ADI nº 1082/STF e não guiadas pelo respeito ao contraditório, ao dever de fundamentação e à garantia da imparcialidade e segurança jurídica”;
b) “o afastamento da ameaça incomum e injustificada de multa, por litigância de má-fé, no que toca à eventual inadequação de indicação de prova testemunhal, permitindo-se o pleno exercício”.
Apreciei as manifestações dos investigados em decisão única, na qual: a) deferi todos os requerimentos de diligências complementares e, b) conhecendo o agravo interno como pedido de reconsideração, o indeferi (ID 158811502).
No que diz respeito ao vício formal da insurgência contra a determinação das diligências complementares de ofício, salientei o não cabimento do agravo interno, com suporte nas normas vigentes (arts. 19 da Res.-TSE nº 23.478/2016; 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019; 36, § 6º, do Regimento Interno do TSE; e 932, I, do CPC). Destaquei que, conforme metodologia aplicada nesta ação, foram submetidas de imediato à Corte a rejeição de preliminares e questões prejudiciais – matérias cujo acolhimento extinguiriam a ação, total ou parcialmente – e a orientação que pautou o exame das diligências complementares. O capítulo foi concluído com os seguintes fundamentos:
“Percebe-se, assim, que o agravo interno é cabível para devolver ao colegiado o exame da decisão em que o relator, nos limites da delegação do Regimento Interno, substitui a atuação da Corte e julga monocratimente o recurso ou o pedido em ação originária – adentrando ou não o mérito, mas sempre com o intuito de exaurir a competência do TSE.
Essa não é a hipótese de decisão interlocutória proferida pelo Corregedor ao determinar a produção de provas. Nesse caso, na condição de Relator da AIJE, incumbe-lhe por lei processar e instruir o feito, preparando-o para o julgamento, que adiante se dará em Plenário ou, nas hipóteses autorizadas pelos §§ 6º e 7º do RITSE, por decisão monocrática. No curso da instrução o Corregedor deverá avaliar situações em que seja recomendável, ainda que não imperativo submeter ao Plenário questões incidentais.
Aliás, o ponto já foi tratado no feito ora em exame, quando consignei que, a par da irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias, na hipótese específica de rejeição de preliminares que em tese podem levar à extinção do feito, a racionalidade e a economia processual recomendavam levar a decisão a referendo. O enfrentamento da matéria pela Corte se destinava a assegurar que a atividade instrutória somente tivesse início caso assentada a admissibilidade da ação. […]
A Corte também voltou a ser consultada durante a tramitação desta ação, mais uma vez por iniciativa deste Relator, a fim de avaliar se a diretriz instrutória consignada na decisão que admitiu ao debate processual fato superveniente. Naquele momento, os réus haviam apresentado pedido de reconsideração, que foi indeferido de forma fundamentada. Teve-se então o cuidado de extrair dessa fundamentação balizas objetivas relativas à aplicação conjugada do art. 23 da LC nº 64/1990 e do art. 329 do CPC e de levá-la a Plenário antes de que fosse dada sequência ao trâmite processual, já que a orientação se aplicaria à etapa seguinte, justamente relativa às diligências complementares (art. 22, VI a IX, LC nº 64/1990.
Assim, não há respaldo para a alegação dos réus de que o art. 36, § 8º do RITSE afasta a aplicação dos art. 19, da Res.-TSE 23.478/2016 e 48, da Res.-TSE 23.608/2019 à AIJE, formulada ao argumento de que a lógica da irrecorribilidade imediata teria sido concebida para “processos típicos, originados em primeira instância”, evitando a remessa de autos ao tribunal em razão de agravo de instrumento.
Em verdade, está-se diante de regras concebidas para evitar interrupções no fluxo dos atos processuais de qualquer ação eleitoral, em qualquer fase, em plena compatibilidade com a função de relatoria em ação originária. A sistemática, conforme visto, é compatível com a possibilidade de o Corregedor optar, diante de questões preliminares ou prejudiciais que conduziam a uma encruzilhada procedimental, por submeter ao Colegiado o caminho que traçou, para que este seja confirmado ou refutado, prestigiando-se à segurança jurídica e o fluxo lógico entre etapas procedimentais.
No momento, como se nota, não está em jogo definir se a ação será extinta ou se prossegue, resolver questão prejudicial ou fixar orientação plenária. A decisão agravada apenas concretizou a atuação deste Relator como responsável por dirigir e ordenar a instrução, inclusive no que diz respeito à produção da prova, nos termos do art. 932, I, CPC, e atento às particularidades das ações eleitorais, conforme arts. 22, VI a IX e 23 da LC nº 64/1990.
O agravo interno é, portanto, manifestamente inadmissível.”
Uma vez conhecido o agravo interno como pedido de reconsideração, os argumentos ventilados pelos réus foram objeto de exame. Transcrevo trechos da fundamentação adotada para rejeitar as alegações de vícios processuais, de “delegação de poderes instrutórios” a grupo adversário, e de constrangimento ao exercício da advocacia:
“[…] observada a metodologia de máximo prestígio ao contraditório e ao dever de fundamentação, recebo a petição ID 158797358 como pedido de reconsideração e o examino, desde já registrado, pelos fundamentos acima expostos, a desnecessidade de submeter a presente decisão a referendo.
O pedido abarca, em parte, pontos já fulminados pela preclusão temporal, lógica e consumativa. É que, conforme relatado, a admissibilidade da juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa e o entendimento pela inexistência de violação à estabilização da demanda ou de alteração da causa de pedir são pontos decididos anteriormente e referendados em Plenário. Não há espaço para rediscutir esses pontos e, menos ainda, para questionar o prazo que havia sido assinalado para a manifestação dos investigados a respeito do documento.
Com efeito, os três dias assinalados – que, diga-se, são superiores ao prazo de dois dias previsto no art. 44, § 4º da Res.-TSE nº 23.608/2019 para manifestação sobre documentos juntados no curso da instrução nas representações especiais – foram devidamente utilizados pelos réus para se contrapor à força probante do documento e, ainda, para formular pedido de reconsideração. Silente a parte à época, não há ensejo, a essa altura, para reivindicar que o prazo fosse maior.
Além disso, a pretensão de que fosse observada simetria com o prazo de contestação, concedendo cinco dias para falar sobre o documento com fundamento no art. 329 do CPC, apenas denota a insistência na tese, já refutada, de que teria havido ampliação da causa de pedir.
Os réus também se insurgem contra as balizas fixadas para a aplicação dos arts. 435 e 493 do CPC em conjugação com o art. 23 da LC nº 64/1990, e que foram referendadas pela Corte. Rememoro que as diretrizes aprovadas pelo colegiado se assentam na premissa de que “a estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento”, uma vez que “há disposições legais expressas no sentido de que o magistrado leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/90). […]
Os investigados afirmam que a orientação redunda em tratamento anti-isonômico às partes, pois, em sua visão, teria sido franqueada à autora a juntada até mesmo de “provas ainda nem produzidas, de fatos desdobráveis ad aeternum, e que não orientaram a linha defensiva vertida na contestação”. A assertiva tem conotação incompatível com o modo de condução deste processo, uma vez que todas as decisões e despachos evidenciam o extremo rigor na manutenção da ordem e da regularidade da tramitação.
A metodologia aplicada às AIJEs das Eleições 2022 envolve uma rotina de saneamento e de diálogo constante, resultando em determinações judiciais delimitadas com precisão, fundamentadas de forma exauriente e que permitem às partes compreender cada passo do trâmite processual. Nesse sentido, o que se definiu em Plenário é a adequação, em tese, da admissibilidade não apenas de fatos supervenientes que constituam desdobramentos da causa de pedir, como também elementos que demonstrem a gravidade da conduta ou a responsabilidade do investigado e de pessoas em seu entorno.
Essa fórmula diz respeito à análise da pertinência da prova à causa de pedir. Não está indicado em qualquer ponto que a partir dela se permitirá um prolongamento ad aeternum da instrução, pois não foram abandonados outros parâmetros que devem ser conjugados na organização da atividade probatória, inclusive a preclusão.
Não há também respaldo para concluir que essa fórmula privilegia a parte autora. Ao réu também importa ter a oportunidade de trazer ao debate processual fatos que digam respeito aos desdobramentos da causa de pedir, à gravidade da conduta e à responsabilidade do investigado e de pessoas em seu entorno. Tanto assim que os investigados, neste feito, requereram a juntada de parecer da PGR, produzido em março de 2023, que indicaria a ausência de indícios de prática de crime em decorrência do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro na reunião de 18/07/2022.
No que diz respeito à negativa de sustentação oral pela parte ré em 14/02/2023, trata-se de ato da Presidência, que não está submetido a revisão pelo Corregedor.
Passando-se aos argumentos propriamente relacionados ao conteúdo da decisão que determinou, de ofício, a realização de diligências complementares, constata-se que o renitente inconformismo dos agravantes com os contornos conferidos à aplicação do art. 23 da LC nº 64/1990 se somou ao desagrado com a aplicação dos incisos VI a IX do art. 22 da mesma lei, para conduzir a afirmações hiperbólicas que desenhariam um cenário de parcialidade do juízo.
Primeiramente, cabe rememorar que a atuação do Corregedor para determinar diligências de ofício ou a requerimento das partes, posteriormente à audiência de instrução é prevista expressamente no procedimento da AIJE. A decisão questionada pelos investigados foi bastante explícita a esse respeito, conforme se lê do trecho a seguir transcrito: […]
Teve-se, então, o cuidado de, em conformidade à melhor técnica processual, assegurar que a regra de julgamento com base em fatos notórios e circunstâncias não alegadas pelas partes (art. 23 da LC nº 64/1990) fosse necessariamente associada a uma regra de instrução (art. 22, VI a IX, da mesma lei). Ou seja: se é possível julgar com base naqueles elementos, é obrigatório que eles sejam previamente inseridos no processo, permitindo às partes e ao MPE se manifestarem a seu respeito e, quando for cabível, requererem provas. Reforça-se, com isso, a garantia de não-surpresa, em pleno respeito ao contraditório efetivo. […]
Os investigados enxergaram na determinação de ofício das diligências complementares uma “indevida correção na deficiente atuação processual do Autor”, eis que seu objeto seriam provas que não foram pretendidas pelo investigante e que aportariam aos autos em momento tardio.
Não está caracterizada, porém, atuação tardia, mas, sim, medida ajustada perfeitamente ao momento que para ela foi previsto no art. 22, VI a IX da LC nº 64/1990, ou seja, após a audiência de instrução. Tampouco há “correção” da atividade da parte autora, eis que é dever do Corregedor, à luz das provas produzidas até a audiência de instrução, avaliar se há diligências necessárias para o deslinde da controvérsia. Este é o comando legal que se impõe ao Relator da AIJE, e que foi estritamente cumprido.
Nesse sentido, após a avaliação do estágio processual do feito, constatou-se haver pontos de dúvida que poderiam ser dirimidos por diligências complementares. Isso porque os termos do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro na reunião de 18/07/2022 com os embaixadores de países estrangeiros e a prova oral produzida em razão de requerimento da parte ré suscitaram questões de relevo para o deslinde da controvérsia.
Por exemplo, na reunião, o primeiro investigado expressamente incumbiu o então Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, a repassar o material da apresentação aos embaixadores, enfatizando ainda que o Ministro também poderia enviar a íntegra do inquérito da Polícia Federal em que, segundo o ex-Presidente, “um hacker falou que tinha havido fraude por ocasião das eleições”. Ocorre que Carlos França, ouvido como testemunha da defesa, negou o envio de material e declarou não ter participado de forma significativa do evento. As duas outras testemunhas da defesa também negaram envolvimento substancial na preparação ou realização da reunião, embora arroladas pelos réus por deterem “particular conhecimento” sobre aspectos da dinâmica do evento.
Nesse cenário, a pertinência da requisição da prova documental aos órgãos governamentais que foram encabeçados pelas testemunhas da defesa – destinada a aferir se tiveram, ou não o envolvimento que a princípio foi sugerido tanto pela fala de Jair Bolsonaro no dia do evento quanto pela justificativa de seu arrolamento – não representa qualquer desbordo dos poderes instrutórios do Relator. Há expressa previsão legal de que o Corregedor pode requisitar documentos de ofício, e assim foi feito. Acrescente-se que a diligência não foi determinada com vista a um resultado pré-definido e pode muito bem ser concluída, como sustentam os réus, com a inexistência de documentos a respeito.
Relembre-se que a orientação plenária fixada em 14/02/2023 contempla três eixos: a) desdobramentos dos fatos originariamente narrados; b) gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir; e c) responsabilidade dos investigados e de pessoas de seu entorno. Por isso, não se sustentam as objeções dos investigados à juntada de cópias do IA 0600371-71 ou à atenção dada às lives protagonizadas pelo primeiro investigado em 2021 e expressamente referidas no discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro no Palácio [da Alvorada] em 18/07/2022.
Os réus se mostraram especialmente afligidos pelo fato de que a requisição de documentos dirigida à Casa Civil será cumprida por Ministro nomeado pelo atual Presidente da República, que venceu a chapa encabeçada pelo primeiro investigado, no pleito de 2022. Chegam a prever uma “elástica atuação probatória prospectiva, em sua pasta e em quaisquer outros órgãos federais”, que, no momento da consolidação, permitirá “ao adversário político a engenhosa apresentação analítica de eventuais achados fortuitos”, congregados em “um relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos”. A isso denominaram “delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação”, o que seria mais um elemento a denotar a parcialidade na condução do processo.
Sabe-se, porém, que a requisição é o meio usual pelos quais os órgãos públicos compartilham entre si documentos que estão em seu poder, impondo-se aos agentes públicos responsáveis o dever de prestar informações completas, autênticas e fidedignas. Isso independe do grupo que se encontre no exercício do poder político e é, mesmo, inerente ao princípio republicano é à impessoalidade.
Governantes, ministros, secretários e demais servidores públicos devem zelar pela integridade dos documentos sob sua guarda e cumprir de forma escorreita a determinação judicial para exibi-los, não lhes sendo lícito usar da requisição como meio para beneficiar ou prejudicar um candidato. Essa obrigação se impõe aos integrantes do atual governo federal, como também se aplicaria se o ex-Presidente tivesse sido reeleito. Descabe partir da premissa de que, ante uma requisição judicial, agentes estatais deliberadamente adulterarão ou ocultarão documentos públicos, a fim de ludibriar o juízo e produzir benefício ilegal para uma das partes, em franco atentado à dignidade da Justiça, prática de improbidade e incursão em conduta criminosa.
Ademais, qualquer relatório informativo que acompanhe os documentos eventualmente compartilhados será submetida ao crivo do contraditório. As partes e o MPE terão a faculdade de apontar o valor que, entendem, deva ser dado às informações. A disputa narrativa, inerente ao devido processo legal, será assegurada. Vieses poderão ser contestados, e, no limite, caso se entenda por indício de falsidade ou ocultação, poderão ser solicitadas as medidas processuais cabíveis, e que reforçam o controle do correto desempenho das funções estatais. Essa dinâmica, que se aplica à sucessão do poder no menor dos municípios brasileiros, se nele tramitar ação que impute ilícito ao Prefeito que não se reelegeu, igualmente rege a AIJE ajuizada no contexto da disputa do mais alto cargo do Poder Executivo brasileiro.
A requisição não se dirige a um “grupo político” e tampouco transfere poder instrutório a ser exercido com “toda sorte de subjetivismos”. Também irrelevante que à época dos fatos o atual Ministro Chefe da Casa Civil não estivesse no governo federal e não tenha pessoal ciência do que se passou. Aquela autoridade não foi intimada como testemunha. Foi oficiada para, exercendo seu papel de coordenação dos demais Ministérios (que foi bem descrito em juízo pela testemunha Ciro Nogueira, anterior ocupante do cargo), reunir a documentação oficial – pertencente ao Estado Brasileiro, e, não, a um ou outro governo – que, acaso existente, possa elucidar as circunstâncias da preparação, da realização e da divulgação do encontro do dia 18/07/2022.
Os réus asseveraram, ainda no que diz respeito à requisição dirigida ao Ministro-Chefe da Casa Civil, que a solicitação foi “genérica e abrangente”, disparando “a consulta a documentos de diversos órgãos governamentais e a consolidação unilateral e casuística de seus (pretendidos) achados”. É afirmação que não encontra eco na determinação, objetiva, de que sejam prestadas “informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio [da Alvorada], em 18/07/2022”. O objeto está perfeitamente delimitado e o êxito da incumbência somente depende de existir devida catalogação documental nos órgãos potencialmente envolvidos e de a diligência ser cumprida de forma eficiente.
Do mesmo modo, não há como interpretar a referência à necessária consolidação de documentos pela Casa Civil para envio à CGE como “prerrogativa de realização de verdadeira devassa, em arquivos federais”, que “abre ensejo à edição conveniente de elementos probatórios e viabiliza, inclusive, o descarte seletivo de provas desfavoráveis à sanha persecutória, com mácula indelével à imparcialidade na construção da materialidade da instrução probatória”. Simplesmente, descabe interpretar uma ordem judicial corriqueira, de compilação documental, como aval para o cometimento de ilegalidades com a gravidade descrita.
Certo é que todas essas elucubrações a respeito de supostos comportamentos ilegais são inservíveis para a finalidade de obstar a produção da prova. Em momento adequado, os réus terão oportunidade de se manifestar a respeito do resultado da diligência e, se assim entenderem, a vista do que concretamente for remetido a este juízo, e não a partir de ilações, poderão apontar deficiência, incompletude ou mesmo irregularidades graves no cumprimento da medida.
A determinação da oitiva de Anderson Torres foi classificada pelos réus como impertinente e inútil, pois a testemunha se encontra sob a custódia do Estado e amparada pelo princípio da não autoincriminação e, ainda, já teria prestado depoimento perante a Corregedoria sobre sua participação em live de 29/07/2021.
A primeira razão de insurgência se mostra inteiramente superada pelos fatos. Anderson Torres, embora sob custódia do Estado e tendo direito ao silencio para não se autoincriminar, foi ouvido em juízo no dia 16/03/2023 e optou por responder a todas as perguntas que lhe foram dirigidas. A inquirição foi feita pelo juiz instrutor, pelos autores, pelos réus e pelo representante do MPE. O depoimento transcorreu em perfeita normalidade, observadas todas as garantias inerentes à condição da testemunha de investigado em inquérito criminal.
O segundo argumento, que sugere a repetição inútil de ato já realizado, desconsidera que a primeira oitiva de Anderson Torres na CGE ocorreu no âmbito de inquérito administrativo, sem a participação das partes que litigam nesta AIJE. A nova coleta do depoimento, em contraditório, com oportunidade para a testemunha falar livremente e corroborar declarações anteriores, retificá-las ou explicá-las, bem se sabe, não é um preciosismo, mas importante reforço na qualidade da prova.
O último aspecto a ensejar objeção pelos réus foi a advertência de que eventuais requerimentos de prova de caráter protelatório ensejariam multa por litigância de má-fé. Enxergaram na decisão “tom de verdadeira ameaça às partes” e ofensa ao legítimo exercício da advocacia.
Na verdade, na atual sistemática do CPC, a advertência prévia está longe de ser uma ameaça. Consiste em desdobramento dos princípios da cooperação e da não-surpresa e, em algumas situações, até mesmo em dever do magistrado (art. 77, IV e VI, c/c §1º; art. 78, § 1º). A descrição de conduta em tese passível de gerar sanção processual permite às partes orientar sua atuação com base em parâmetros prévios, evitando comportamentos discrepantes da boa-fé objetiva.
No caso, a advertência consistiu em indicar que as partes (não somente os réus, como também o autor) deveriam atentar para o caráter complementar das diligências a serem requeridas neste momento processual, demonstrando de forma objetiva a pertinência e a utilidade da prova, “a partir da estrita vinculação aos fatos específicos que se pretende provar”. Detalhou-se, ainda, que o caráter protelatório dos requerimentos poderia decorrer da formulação de requerimento abstrato ou amparado em justificativa amplíssima. Por fim, sem fixar valor prévio para eventual descumprimento, consignou-se que esta seria “proporcional à circunstância concreta”, caso praticado o ato protelatório.
O teor da advertência é compatível com a premissa da boa-fé objetiva e com os deveres das partes e de seus procuradores, em especial o de “não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito” (art. 77, III). Mais que isso, denota o rigor que se tem adotado nesta ação para assegurar que o procedimento siga fluxo regular, a salvo de turbações, pari passu com a máxima amplitude do contraditório. Não há, então, nenhuma colisão entre franquear o requerimento de prova e advertir a parte de que esta oportunidade, complementar, deve ser exercitada com especial atenção ao momento processual e de forma cuidadosa o suficiente para viabilizar o exame do requerimento de prova.
Mencione-se que, longe de produzir efeito intimidatório, a advertência parece ter contribuído para a necessária objetividade da formulação a respeito de diligências complementares de interesse dos réus. O tema será abordado no próximo tópico.
Os fundamentos declinados conduzem ao indeferimento do pedido de reconsideração, devendo ser mantidas tanto as diligências complementares determinadas de ofício quanto a advertência contra condutas protelatórias das partes, plenamente compatível com fase atual.”
(com destaques no original)
Em inquirição iniciada em 27/03/2023 e concluída em 28/03/2023, colheram-se os depoimentos das testemunhas Filipe Barros, Deputado Federal (ID 158843587), Vitor Hugo, ex-Deputado Federal (ID 158843586), e Augusto Nunes, apresentador do programa “Os Pingos nos Is” (ID 158863333). Houve desistência, pelos investigados, da oitiva de Guilherme Fiúza e Ana Paula Henkel (ID 158863332).
As requisições e solicitações de documentos, pelo juízo e pelos investigados foram integralmente cumpridas, constando dos autos:
a) documentos extraídos do Inquérito nº 0600371-71 (ID 158764855);
b) prova documental requisitada à Casa Civil (IDs 158839073 a 158851459);
c) cópia integral do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF, atualmente em trâmite sigiloso na 10ª Vara Federal de São Paulo/SP sob o número 5007377-27 (ID 158850900);
d) cópias dos Inquéritos nos 4878/DF e 4879/DF, em trâmite no STF sob Relatoria do Min. Alexandre de Moraes, inclusive resultado dos exames periciais realizados na “minuta de decreto de Estado de defesa” (IDs 158835933 e 158839056);
e) juntada de cópia integral da Petição nº 10.477/DF, em trâmite no STF sob Relatoria do Min. Luiz Fux (ID 158871511).
Tendo em vista a conclusão das diligências complementares relativas à prova documental requisitada a outros órgãos, abriu-se vista às partes e ao Ministério Público Eleitoral, nos termos do art. 44, § 4º, da Res.-TSE nº 23.608/2019 (ID 158852019).
Em resposta, o autor limitou-se a requerer o prosseguimento do feito (ID 158880544).
Por sua vez, os réus formularam novos requerimentos, a saber (ID 158881918):
a) juntada de matéria jornalística da CNN de 24/03/2023, relativa ao “recebimento de denúncia concernente a invasão hacker de sistemas (periféricos) do TSE, por ocasião das eleições municipais do ano de 2020”, “a fim de que o d. Corregedor avalie a necessidade de abertura de vista específica à parte contrária e ao d. órgão ministerial sobre o aludido documento”;
b) envio de ofício ao juízo responsável pela investigação do fato noticiado pela CNN, a fim de que “encaminhe cópia integral do inquérito (eis que já efetivada a denúncia) ao crivo do il. Corregedor e a consequente juntada aos autos, para ciência e manifestação das partes e do parquet eleitoral”;
c) juntada de postagem de autoria do “Sr. Carlos Lupi, enquanto presidente do PDT – Nacional, realizada em data recente, 27/05/2021 (contemporânea às lives trazidas aos autos pelo d. juízo), acompanhada do vídeo respectivo, que ostenta o seguinte trecho verbal: ‘Sem a impressão do voto, não há possibilidade de recontagem. Sem a recontagem, a fraude impera. Confira meu recado defendendo eleições honestas e verdadeiramente democráticas.'”;
d) oitiva de Eduardo Gomes da Silva, a princípio determinada pelo juízo, uma vez que “além da pertinência, já divisada àquela altura pelo juízo, inclusive quanto à submissão de elementos probatórios colhidos em caráter inquisitorial ao crivo do contraditório, cumpre enfatizar que alegações de Eduardo Gomes da Silva, prestadas extra autos, foram utilizadas, por diversas vezes e de forma expressa, para indagação de outras testemunhas do Juízo, notadamente os peritos federais Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro”;
A Procuradoria-Geral Eleitoral informou “que analisará a prova documental produzida nos autos, incluindo a compartilhada pelo Juízo da 10ª Vara Criminal de São Paulo/SP e aquela apresentada pela Casa Civil, por ocasião da manifestação a que se refere o art. 22, XIII, da Lei Complementar n. 64/1990” (ID 158882219).
Os requerimentos de novas diligências requeridas pelos investigados foram parcialmente deferidos, apenas para aceitar-se a juntada de prova documental relativa a fatos mencionados na audiência. Quanto aos demais requerimentos, que restaram indeferidos, explicou-se o seguinte (ID 158886314):
“[…] a presente AIJE contou com amplo prestígio à iniciativa probatória das partes, associado à minudente análise da pertinência objetiva das diligências a serem determinadas.
Com isso, foi possível conjugar contraditório e celeridade, conduzindo-se o procedimento com estrita observância ao diálogo processual, à boa-fé objetiva, ao princípio da não surpresa e ao dever de fundamentação. Em pouco mais de 3 meses, foram realizadas cinco audiências e requisitados todos os documentos, inclusive procedimentos sigilosos, relacionados aos fatos relevantes para deslinde do feito. Saliente-se que foi deferida a oitiva de nove testemunhas da defesa e, em razão da desistência dos investigados, ouvidas seis delas. Foram ouvidas ainda 3 testemunhas por determinação do juízo, sempre com a necessária delimitação dos fatos que seriam objeto do depoimento.
Aberta vista a respeito dos documentos produzidos, a parte ré juntou documentos relativos a pontos tangenciados nas audiências de 27 e 28/03/2023 e manifestou interesse em novas diligências, a saber: requisição de inquérito relativo a ataque hacker a sistemas periféricos da Justiça Eleitoral em 15/11/2020 e oitiva de Eduardo Gomes da Silva.
No que diz respeito à denúncia ofertada pelo MPE em razão do ataque de 15/11/2020, os próprios investigados admitem que se tratou de exemplo utilizado na audiência, durante a inquirição de Filipe Barros, para lhe indagar “se esse tipo de situação contribuiria, de alguma forma e em tese, para a compreensão de que a matéria atinente ao aprimoramento da votação eletrônica, em sentido amplo, estaria a merecer debate público, revestido de interesse jornalístico”, “ao que assentiu conclusivamente a testemunha”.
Tratou-se, portanto, de uma conjectura, ilustrada pela matéria divulgada em 24/03/2023 e utilizada para fazer uma pergunta à testemunha. Esta, por sua vez, apenas emitiu uma opinião, concordando com a sugestão de que “esse tipo de situação contribuiria, de alguma forma e em tese” para estimular a defesa do “aprimoramento da votação eletrônica”. O teor da notícia da CNN relatado na audiência não foi posto em dúvida pela parte autora, pelo MPE ou pelo juiz instrutor e, ainda assim, os réus diligenciaram por juntar cópia da matéria, que demonstra que a informação dos advogados foi fidedigna ao fato noticiado (ID 158881919).
Nesse cenário, o pretendido acesso a autos da referida investigação é manifestamente desproporcional ao contexto em que a notícia da CNN foi mencionada, como simples elemento ilustrativo da pergunta formulada em audiência. Assevera-se que a requisição de informações sobre investigações em curso, o que já foi deferido neste feito em mais de uma ocasião, não pode ser trivializada, exigindo sempre avaliar se o conhecimento de fatos sensíveis e diligências estratégicas é mesmo essencial para a solução da controvérsia. No caso, a resposta é negativa, eis que adentrar os detalhes da denúncia é algo que extrapola a correlação estabelecida pelos próprios investigados ao se referir à matéria da CNN.
Quanto ao manifestado interesse na oitiva de Eduardo Gomes da Silva, que havia sido arrolada pelo juízo, é de se observar que a relevância desse depoimento em juízo ficou prejudicada em razão das declarações de Anderson Gustavo Torres, Ivo Peixinho e Mateus Polastro, suficientes ao esclarecimento da reunião prévia à live de 29/07/2021. A conclusão não é diferente daquela que levou os réus a desistirem de três das testemunhas que haviam arrolado. Assim, tendo em vista que Eduardo Gomes da Silva acabou não sendo localizado, descabe persistir na prova, que a essa altura seria meramente redundante.
Por fim, os documentos juntados pelos réus, relacionados a ocorrências da audiência, não desafiam nova vista à contraparte e à PGE, pois poderão ser objeto de exame nas alegações finais e no parecer, na linha já indicada pelos próprios sujeitos processuais em suas manifestações nesta fase.
Conclui-se, assim, que o rico acervo probatório reunido nos autos, que foi formado com ampla participação das partes e do MPE, esgota as finalidades da instrução, razão pela qual cumpre encerrar a presente etapa processual.”
(Com destaques no original)
Nesses termos, a instrução foi encerrada, expedindo-se intimações: a) às partes, para apresentarem alegações finais no prazo comum de dois dias, e b) ao Ministério Público Eleitoral, para apresentar parecer nos dois dias imediatamente subsequentes ao término do prazo de alegações finais, independentemente de nova intimação.
Determinou-se a juntada imediata, sob sigilo, das transcrições dos depoimentos colhidos nas audiências de 16, 27 e 28/03/2023. Os depoimentos constam dos IDs 158886321, 158886322, 158886323 e 158886324.
Os investigados apresentaram alegações finais, requerendo, sucessivamente: a) a extinção do processo sem resolução de mérito, por incompetência da Justiça Eleitoral; b) a extinção do feito somente em relação ao segundo investigado, que seria parte ilegítima; c) a redelimitação da demanda, excluindo-se “os fatos e eventuais ‘provas’ oriundos da indevida extensão da causa de pedir, bem como aqueles derivados da inadequação da atuação probatória empreendida pelo Juízo, eis que se revelou excessiva”; e d) o julgamento de improcedência do pedido (ID 158914533).
Suscitam, primeiramente, questões processuais, inclusive já decididas em Plenário, por entender que também estas podem ser renovadas em alegações finais, com base no art. 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019. Com isso:
a) reiteram preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral para a análise de atos praticados na condição de Chefe do Executivo, afirmando que os depoimentos colhidos em audiência corroboraram a tese de que na reunião com os embaixadores não se tratou sobre eleições em sentido estrito e não houve pedido de votos, comparação entre candidaturas ou ataques a oponentes;
b) retomam a objeção à admissão da juntada da minuta do decreto de estado de defesa, com fundamento em alegada violação à estabilização da demanda, ao princípio da congruência, ao contraditório e à segurança jurídica;
c) reafirmam que a decisão que determinou a realização de diligências complementares foi ilegal e consubstanciou tratamento anti-isonômico às partes, uma vez que seu teor:
c.1) destoou das balizas fixadas na ADI nº 1082/STF a respeito da instrução suplementar permitida ao Corregedor, provendo indevida correção na deficiente atuação processual do Autor, determinando, sem apresentar a necessária fundamentação, a complementação de provas que deveriam ter sido por ele requeridas a tempo e modo;
c.2) violou o contraditório substancial, pois em lugar de reabrir o prazo de contestação de cinco dias ou de assegurar prazo equivalente a este com base no art. 329 do CPC, concedeu três dias para a manifestação;
c.3) procedeu a uma indevida “delegação de poder instrutório” ao requisitar documentos à Casa Civil, confiando ao Ministro do Executivo, adversário político do investigado Jair Bolsonaro, “a realização de busca ampla e abrangente, sem critérios objetivamente predefinidos”; e
c.4) afrontou a segurança jurídica ao se utilizar da regra prevista no art. 23 da LC nº 64/1990 para determinar a realização de diligências que não guardavam qualquer relação com a causa de pedir originária e, com isso, promover a ampliação objetiva da demanda;
d) persistem na necessidade de oitiva de Eduardo Gomes da Silva – cuja oitiva, determinada de ofício, foi reputada redundante após os depoimentos de Anderson Torres, Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro – e na requisição de cópia de inquérito cuja instauração foi noticiada pela CNN em 24/03/2023 e mencionada pelo advogado de defesa na audiência, argumentando que a prova é necessária para corroborar “uma das principais teses de defesa, a saber, a legitimidade do debate público travado pelo investigado Jair Messias Bolsonaro acerca do sistema eletrônico de votação, sempre em prol do progressivo aprimoramento dos meios disponíveis”;
e) suscitam a ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado, “diante da ausência de imputação pelo Autor da respectiva participação, direta ou indireta, nos atos questionados, inviabilizando-se, assim, a aplicação da (personalíssima) sanção de inelegibilidade na espécie (por fato de terceiro), única possível de aplicação frente ao insucesso da chapa no pleito eleitoral presidencial de 2022”;
Quanto ao mérito, sustentam que:
a) as provas documental e testemunhal produzidas demonstraram que nas lives realizadas nos dias 29/07/2021 e 05/08/2021, assim como na entrevista concedida ao programa televisivo “Os Pingos nos Is”, o primeiro investigado adentrou, de forma legítima, “o debate sobre a conformação atual do sistema eleitoral” e sobre os “melhoramentos desejáveis no sistema eletrônico de coleta de votos”;
b) seu comportamento pautou-se pela “eminente boa-fé, franqueza e abertura do diálogo institucional travado entre uma série de atores institucionais da República, dentre os quais o Primeiro Investigado, enquanto então Presidente do Brasil”, tendo como pano de fundo dos debates de Comissão Especial da Câmara dos Deputados em que se debatia proposta de Emenda Constitucional “com vistas a benfazejas alterações do sistema eletrônico de votação”;
c) as manifestações do primeiro investigado nas referidas lives e na entrevista respeitaram os limites da liberdade de convicção pessoal, que não pode ser taxada fraudulenta, uma vez que “a antinomia ‘verdadeiro-falso’ só cabe a juízos de fato, espécie linguística distinta de uma opinião”, e que “conforme os termos da lógica filosófica, atribuir veracidade ou falsidade a um juízo de valor constitui erro categorial, a se concluir ser item impassível de controle jurisdicional”;
d) não houve divulgação de informação falsa, pois relatou-se, “de modo assaz sintético, aliás, a existência de um episódio, nos idos de 2018, de ataque hacker aos sistemas de informatização de toda a Justiça Eleitoral – incluindo Tribunais Regionais Eleitorais de um número de Estados da Federação e o próprio E. Tribunal Superior Eleitoral”;
e) a informação se baseou em subsídios concretos obtidos a partir da análise do teor do Inquérito Policial nº 1361/2018-4SR/PF/DF, que não estava gravado com sigilo, e das informações fornecidas pelos peritos Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro sobre possíveis vulnerabilidades do sistema eletrônico de votação, o que foi confirmado no depoimento prestado pelos policiais federais;
f) referidos policiais foram convidados a comparecer ao Palácio do Planalto “(pelos canais hierárquicos apropriados, mediante procedimento regular, afastando-se ação extra legem) para explicar, com técnica e cientificidade, possíveis vulnerabilidades do sistema eletrônico de votação adotado no Brasil”, em procedimento inteiramente regular, sem “abuso de funções sou poder”;
g) os depoimentos prestados pelos peritos permitem afirmar “serem verossímeis os motivos a basear todo o debate sobre segurança das urnas eletrônicas sem jamais, contudo, frise-se, duvidar da integridade institucional da Justiça Eleitoral ou da boa-fé de sua conduta”;
h) “não se crê agora, nem em tempo algum, terem sido vulneradas as urnas eletrônicas no pleito de 2018 ou, com efeito, de 2022 – ou em qualquer outra eleição, geral ou local”, pois o TSE assume “postura leal e institucionalmente irmanada com a genuína proteção da democracia” e “frequentemente faz rigorosos (e públicos) testes de segurança nos receptáculos eletrônicos de votos, adotando com presteza e diligência ímpares medidas fundadas de aprimoramento sugeridas, sempre com abundante zelo e elogiável competência”;
i) o depoimento do Deputado Filipe Barros explicitou circunstâncias regulares em que recebeu o Inquérito Policial nº 1361/2018-4SR/PF/DF, para fins de estudo na Comissão Especial da Câmara dos Deputados;
j) o depoimento prestado pelo Embaixador Carlos Alberto França e os documentos apresentados pela Casa Civil, formada em grande parte por convites, corroboram a afirmação de que a reunião com os embaixadores consistiu em um evento oficial, que constou da agenda oficial do Presidente da República, para o qual foram convidados representantes de Estados estrangeiros – que sequer detinham capacidade ativa de sufrágio -, para uma exposição de perfil diplomático de interesse das relações exteriores do Brasil;
k) o caráter oficial do evento, que configurou típico ato de governo, também é confirmado pelo fato de terem sido convidados o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, assim como os chefes do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do Tribunal de Contas da União, além de altas autoridades dos três poderes da República;
l) a documentação apresentada pela Casa Civil também comprovou a trivialidade da organização de “evento simples, verdadeiramente ‘franciscano'”, que teve um custo total correspondente ao módico montante de R$12.214,12 (doze mil duzentos e quatorze reais e doze centavos);
m) as testemunhas Ciro Nogueira Lima Filho e Flávio Augusto Viana Rocha, então Ministro-Chefe da Casa Civil e Secretário Especial de Assuntos Estratégicos, respectivamente, confirmaram que o evento não teve cunho eleitoral ou partidário e que nele se buscou debater o importante tema da transparência do processo eleitoral, sem a veiculação de pedido de votos, de comparação de governos ou de exposição de plataformas governamentais ou sociais;
n) a Procuradoria-Geral da República, entendendo pela atipicidade das condutas atribuídas a Jair Bolsonaro e enfatizando a importância de um debate público sobre temas eleitorais relevantes, manifestou-se pelo arquivamento de notitia criminis apresentada ao Supremo Tribunal Federal que, com base no mesmo fato, objetiva apurar a prática dos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP), incitação de animosidade das Forças Armadas contra os poderes constitucionais (art. 286, parágrafo único, do CP) e de responsabilidade (art.85, II a V, da CF);
o) em diversos momentos do discurso de 18/07/2022, o primeiro investigado enfatizou seu desejo por eleições limpas e pela correção de falhas, para que “o ganhador seja aquele que realmente seja votado”, o que demonstra que “não houve qualquer hostilidade antidemocrática ao sistema eleitoral no evento”;
p) a análise da gravidade da conduta deve ser feita de forma contextualizada, considerando as seguintes circunstâncias, que demonstram a inexistência de significação eleitoral:
p.1) as dúvidas do primeiro investigado sobre a segurança do processo eleitoral, compartilhadas por parcela significativa da população, estavam fundamentadas em documentos oficiais que lhe foram entregues;
p.2) poucos dias antes da reunião com os embaixadores o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, “a despeito de, com o devido respeito, não estar legitimado constitucionalmente para tanto”, convocou reunião com a comunidade internacional “a pretexto de fornecer ‘informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira'”;
p.3) o primeiro investigado “expôs, às claras, sem rodeios, em linguagem simples, fácil e acessível, em rede pública, quais seriam suas dúvidas e os pontos que – ao seu sentir – teriam potencial de comprometer a lisura do processo eleitoral”, em “diálogo aberto”;
p.4) o Tribunal Superior Eleitoral emitiu nota pública de esclarecimento, à qual foi dada ampla publicidade, rebatendo 20 (vinte) pontos apresentados pelo investigado durante a reunião, inclusive por parte dos órgãos de imprensa;
p.5) com a reação imediata “qualquer possibilidade – ainda que remota e inventiva – de lesão à legitimidade das eleições foi prontamente estancada pela Justiça Eleitoral que, ademais, se valeu da oportunidade para prestar relevantes esclarecimentos públicos e reforçar, ainda mais, a certeza de integridade do sistema eleitoral do Brasil”;
p.6) “não houve qualquer autopromoção, crítica a adversários ou considerações de caráter eleitoral-partidário no evento, como sustentaram, sob juramento, em uníssono, as testemunhas que compareceram ao evento”;
q) a minuta de decreto de Estado de Defesa não pode ser admitida como prova, pois “não consubstancia verdadeiramente ‘documento’, eis que não assinado, não apresenta identificação de que o produziu, não apresenta destinatário, bem como não identifica efetiva intenção e realidade/materialidade de seu conteúdo”;
r) laudo pericial realizado no documento atesta que este “jamais foi sequer tocado pelo primeiro investigado”, sendo identificadas digitais que levam a concluir pela “contaminação” do material e pela “quebra da cadeia de custódia da prova”, gerando sua nulidade para todos os fins;
s) ainda que seja considerada como prova, a minuta de decreto não é apta a comprovar qualquer ilegalidade, pois trata-se de documento apócrifo e inidôneo, que não foi retirado a residência de Anderson Torres e que nunca foi levado ao conhecimento do então Presidente da República, inexistindo notícia “de qualquer ato praticado no contexto da realidade fenomênica para sua consecução”, como a necessária oitiva prévia do Conselho da República do Conselho de Defesa Nacional;
t) as provas compartilhadas pelo Supremo Tribunal Federal demonstram que não houve quebra de sigilo por parte do investigado ou de terceiros quando da divulgação de documentos constantes do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF, pois o referido procedimento não tramitava sob sigilo e não continha documentos sigilosos;
u) é infundada a pretensão de que as lives realizadas em 2021, a reunião com os Embaixadores promovida em 2022, os fatos apurados no Inquérito nº 4878/DF e a denominada minuta de decreto de Estado de Defesa sejam considerados em conjunto, pois “[o]s fatos não são passíveis de concatenação entre si, seja por não possuírem natureza idêntica (falas em lives de opinião versus pronunciamento como Chefe de Estado), seja pelo extenso decurso temporal entre um e outro” e, ainda, porque o investigado não teve qualquer participação nos últimos fatos, que são posteriores à eleição, inexistindo possibilidade lógica ou temporal de que tenham interferido na liberdade do sufrágio ou na legitimidade do pleito; e
v) a pronta reação do TSE em contrapor as opiniões manifestadas na reunião impugnada e a propositura desta demanda, com a concessão de liminar determinando a retirada do vídeo da reunião das redes sociais do investigado e da plataforma da EBC, retiraram a possibilidade de que o discurso proferido aos embaixadores produzisse danos à normalidade e à lisura do pleito, não havendo gravidade, sob a perspectiva quantitativa, apta a configurar a alegada conduta abusiva.
Havendo gravado suas alegações finais com sigilo, os investigados justificaram a medida tendo em vista que “substancial parcela do caderno probatório utilizada como substrato de defesa encontra-se protegida por segredo de justiça” (ID 158914531).
Em vista da justificativa apresentada, a manutenção do sigilo foi confirmada em despacho, no qual ainda se determinou à Secretaria Judiciária colocar a íntegra dos autos em sigilo provisório, até que apresentadas as alegações finais do autor e o parecer do Ministério Público, momento no qual, gravadas individualmente essas manifestações, deveria ser levantado o sigilo dos autos. Na oportunidade, salientou-se “o dever de todos que produzirem ou acessarem as alegações finais e o parecer de preservar as informações sigilosas transcritas ou avaliadas nas referidas peças.” (ID 158916745).
Na sequência, vieram aos autos as alegações finais do investigante (ID 158917113), manifestação que se conclui com o requerimento de que os pedidos sejam julgados procedentes, para declarar os investigados inelegíveis. Colhem-se os seguintes argumentos:
a) as falas do primeiro investigado na reunião de 18/07/2022 confirmam que “[a] tônica do encontro foi a de soerguer protótipos profanadores da integridade do processo eleitoral e das instituições da República, especificamente o TSE e seus Ministros”, sendo que “o Senhor Jair Messias Bolsonaro criou uma ambiência propícia para a propagação de toda sorte de desordem informacional ao asseverar, por diversas vezes, que o sistema eletrônico de votação é receptivo a fraudes e invasões que, sob a ótica do delírio presidencial, podem comprometer a fidedignidade do resultado das eleições brasileiras”;
b) o discurso, que converge com estratégia de campanha, foi transmitido pela TV Brasil, pertencente à EBC (empresa pública, nos termos da Lei nº 11.652/2008), e pelas redes sociais do primeiro investigado, obtendo expressivo alcance na difusão de informações falsas já reiteradamente desmentidas pelo TSE e por agências independentes de checagem desde 2018;
c) a convergência entre o episódio e a “pauta política” do candidato já foi reconhecida pelo TSE no julgamento da a RP nº 0600549-83, de Relatoria da Min. Maria Cláudia Bucchianeri, relativa aos mesmos fatos tratados nesta AIJE, o que resultou em condenação do primeiro investigado por propaganda eleitoral antecipada, a confirmar o desvio de finalidade eleitoreira do evento;
d) Jair Messias Bolsonaro questionou a integridade do sistema eleitoral brasileiro por, pelo menos, 23 (vinte e três) vezes durante o ano de 2021, o que foi comprovado por meio dos documentos oriundos do Inquérito Administrativo nº 0600371-71 que se encontram nesta AIJE;
e) a difusão de desordem informacional dessa natureza constitui “modus operandi do primeiro investigado”, que deliberadamente utilizou “os ataques ao sistema eleitoral e a esta JE como estratégia de campanha para auferir dividendos eleitorais de parcela da população que passou a desacreditar na confiabilidade do processo de votação”, um “caminho […] palmilhado para atingir o ápice da difusão de fake News nos período próximo ao início da propaganda eleitoral”;
f) a conduta é grave, pois, “para além de esgarçar o tecido social, mina a essência do Estado Democrático de Direito”, como drástica consequência de uma “manipulação de informação” que “não está dentro do espectro da liberdade de expressão nem tampouco de ‘atos de governo'”;
g) “[a] proliferação de desordem informacional não se presta a construir pontes para diálogos, muito menos para aperfeiçoar sistemas, institutos ou instituições”, tratando-se na realidade de conteúdo desinformativo de grande potencial ofensivo, agravado pelo “uso de todo o aparato estatal para se beneficiar dos efeitos da veiculação do evento telado”;
h) a documentação apresentada pela Casa Civil demonstra que a organização da reunião com os embaixadores, na qual foi proferido o discurso impugnado nesta AIJE, envolveu a adoção de providências por parte da Secretaria de Administração da Secretaria-Executiva da Casa Civil da Presidência da República, do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e do Ministério de Relações Exteriores e do Gabinete Pessoal do Presidente da República, que, por sua vez, demandaram diversos outros departamentos, além de ter contado com a cobertura da TV Brasil;
i) já está evidente, desde que a desmonetização de canais que propagavam notícias falsas produzidas pelo primeiro investigado foi determinada no Inquérito Administrativo nº 0600371-71, que esses ataques intensos às instituições eram estratégicos e que “para manter a adesão, o apoio dos seus apoiadores e a posterior ‘viralização’ das falas, o primeiro investigado tinha que agir de modo bélico, lastreado em sensacionalismo e inverdades, como sempre agiu, senão não iria alcançar o estado de ebulição do seu eleitorado”;
j) a “teoria do ato de governo” não torna o ato insuscetível de controle do Poder Judiciário, uma vez que não é compatível com o Estado Democrático de Direito “selar autoridades em sacrários inacessíveis, nem tampouco imunizar atuações governamentais que agridam de forma intensa o regime democrático e a confiabilidade do sistema eletrônico de votação”;
k) é insubsistente a tese de que o público-alvo do evento não ostentava “capacidade ativa de sufrágio”, uma vez que a ocasião foi planejada com desvio de finalidade, utilizando-se da TV Brasil e das redes sociais do então Presidente da República “para que inúmeras páginas e perfis compartilhassem as mídias” e, ainda, para “buscar adesão de países estrangeiros para que, se porventura um golpe de Estado fosse instaurado, obtivesse apoio, já que o processo de votação não seria confiável e estaria eivado de fraude”;
l) o vídeo do evento violou a política de integridade eleitoral do Youtube, sendo, por isso, removido por iniciativa da plataforma, o que corrobora o desvio de finalidade do evento alegadamente voltado para o interesse público, e, por conseguinte, o uso do aparato estatal, que abarca a transmissão da TV Brasil e as instalações do Palácio da Alvorada, em favor da campanha;
m) os depoimentos prestados por Flávio Augusto Viana Rocha, Carlos Alberto França e Ciro Nogueira Lima comprovaram que o governo brasileiro, diretamente ou pelo Ministério das Relações Exteriores, nunca recebeu questionamentos formais acerca da integridade do processo eleitoral brasileiro, seja por governos estrangeiros, seja por organismos internacionais, tampouco houve demanda por parte de embaixadores para conhecer o sistema eleitoral brasileiro, o que revela o “caráter insólito” da iniciativa inédita e pessoal do investigado Jair Bolsonaro;
n) do ponto de vista das relações internacionais do Brasil, “a imprestabilidade da reunião foi tanta – o que seria o contrário caso o interesse para sua realização tivesse sido idôneo -, que as embaixadas participantes sequer deram algum retorno sobre o ato, o que denota o total desinteresse”;
o) o depoimento prestado por Anderson Torres foi contraditório, revelou postura omissiva do então Ministro da Justiça – que, mesmo de posse da “minuta do golpe”, não adotou providências para apurar fatos “gravíssimos” – e autoriza concluir que a minuta era a “materialização da última fase de um plano milimetricamente traçado para derrubar o Estado Democrático de Direito”, o qual remete ao teor do discurso de 18/07/2022;
p) as provas carreadas aos autos convergem no sentido de que não houve quebra da integridade do processo eleitoral que pudesse justificar as alegadas dúvidas sobre a idoneidade e confiabilidade das urnas, destacando-se que os depoimentos prestados por Anderson Torres e pelos peritos da Polícia Federal comprovaram que, a despeito das afirmações feitas por Jair Bolsonaro na live realizada em julho de 2021 e na reunião com os embaixadores, nenhum dos elementos constantes dos relatórios da Polícia Federal e do Inquérito Policial por ele mencionados permitiam a conclusão da existência de fraude nas Eleições 2018;
q) as testemunhas Augusto Nunes, Ciro Nogueira Filho e Filipe Barros “foram uníssonas ao asseverarem que nunca tiveram ciência a respeito da existência de fraudes nas urnas eletrônicas”;
r) na perspectiva do uso indevido dos meios de comunicação, “é inegável que a veiculação de vídeos que carregam matéria de alta sensibilidade perante o eleitorado, mormente quando se trata de fatos sabidamente inverídicos, em redes sociais, possui reprovabilidade suficiente para caracterizar a gravidade do ato”, tratando-se de condutas que “abalaram de forma intensa a normalidade e a legitimidade do pleito”, apresentando-se como “efeito mais palpável e perceptível do discurso […] o que ocorreu em Brasília no último 08/01/2023”;
s) os fatos e as circunstâncias que restaram demonstrados se subsomem aos parâmetros delimitados no julgamento do RO nº 0603975-98, tanto no aspecto qualitativo, ante a intensa reprovabilidade da conduta, quanto no aspecto quantitativo, em vista dos massivos dados de audiência apurados e do efeito multiplicador que certamente ampliou o alcance do discurso;
t) o discurso impugnado nesta AIJE deve ser sopesado não apenas no contexto do pleito, mas também considerando os graves fatos ocorridos no período pós-eleitoral, como: a “cruzada antidemocrática” que os apoiadores do investigado Jair Bolsonaro iniciaram após o resultado do pleito; a ação intentada pelo Partido Liberal (PL) com o objetivo de invalidação de votos; a invasão das sedes do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto por “vândalos” em 08/01/2023; e a minuta do decreto de estado de defesa apreendida na residência de Anderson Torres – fatos já “batizados” pelo “contraditório substancial”; e
u) o desvio eleitoral do uso da reunião com os embaixadores, com o aproveitamento de toda a montagem e estrutura do evento para fins de divulgá-lo como pauta de campanha, não é mensurável pelo valor empregado (R$12.214,12), sendo evidente a prática de conduta vedada (art. 73, I, da Lei nº 9.504/1997) e o “uso desvirtuado do poder político”.
A Procuradoria-Geral Eleitoral ofereceu parecer no qual opina pela parcial procedência da ação, a fim de que seja declarada a inelegibilidade somente de Jair Messias Bolsonaro em razão de abuso de poder político e de uso indevido dos meios de comunicação, e pela “absolvição do candidato a Vice-Presidente a quem não se aponta participação no caso. Embasa a manifestação nos seguintes pontos (ID 158931404):
a) o TSE reconheceu, ao julgar procedentes quatro representações por propaganda eleitoral extemporânea com base nos mesmos fatos – incluindo-se uma proposta pelo Ministério Público Eleitoral – “que o pronunciamento do Presidente da República destoava da verdade e que servia a propósitos eleitoreiros”, assentando conclusão sobre a matéria fática que se repete nesta ação;
b) naquela ocasião, a PGE já havia assinalado que o discurso de 18/07/2022 integrava “um conjunto de assertivas que compõe o propósito de desacreditar a legitimidade do sistema de votação digital que será empregado nas eleições vindouras e que tem sido adotado desde 1996”, o que, embora não fosse novidade no histórico do primeiro investigado, ocorreu, daquela vez, “em período próximo das eleições, veiculando noções que já foram demonstradas como falsas, sem que o representado haja mencionado os desmentidos oficiais e as explicações dadas constantemente no passado”;
c) à época da realização da reunião com os embaixadores, a Proposta de Emenda à Constituição destinada a implementar o comprovante impresso de votação já havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional, o que, juntamente com a constatação de “desmentidos de índole oficial e baseados em dados técnicos não foram mencionados, nem contraditados”, repele a versão “do propósito republicano de contribuir para a melhoria das instituições”;
d) o discurso também procurou incutir na audiência formada por embaixadores “a errada impressão de que o processo de votação é obscuro, insuscetível de gerar confiança e aparelhado para manipulações de resultado em favor de um candidato e em detrimento de outro”, o que não é inócuo sequer considerando a audiência presencial, pois teve o intuito de descredibilizar perante a comunidade internacional o futuro resultado das eleições, em momento no qual as pesquisas eleitorais indicavam vantagem de um adversário;
e) os ataques a Ministros do TSE, no qual se destaca a insinuação de que o então Presidente do tribunal era também “responsável” pelo restabelecimento da elegibilidade de Lula, têm “o indubitável propósito de associar a direção da Justiça Eleitoral aos interesses de um dos candidatos”, por meio de descontextualização e distorção de fundamentos adotados pelo STF para anular processos criminais por questões processuais;
f) ante a severa dissociação dos fatos, “[n]ão há como ouvir o discurso e o admitir no domínio normativo da liberdade de expressão”, percebendo-se que “as assertivas proferidas se voltam para animar parcela do eleitorado” e a retratar Jair Messias Bolsonaro “como fustigado pelo sistema vigente”;
g) sob a ótica do abuso de poder, a “escusa do propósito republicano de contribuir para a melhoria das instituições […] é descabida e não se sustenta em fundamento que impressione”, não obstante a “dedicada e industriosa defesa” arguir que “o intuito do investigado terá sempre sido o de contribuir para o debate em torno de tema de inequívoca relevância democrática”, pois a proposta de voto impresso já havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional e o que se tinha era “o Chefe de Estado dizendo, nessa qualidade, para brasileiros e autoridades de países com embaixadores no país, que não se podia acreditar na legitimidade do processo eleitoral”;
h) “[m]esmo com as medidas cautelares adotadas neste processo alguns dias depois de realizado o encontro, o episódio ingressou no ambiente da disputa eleitoral e se difundiu”, sendo que “[b]astaria, na realidade, a sua ocorrência e a notícia respectiva para que a gravidade qualitativa do evento se positivasse”;
i) a gravidade dos fatos, em seu aspecto qualitativo, reforça-se porque o discurso objeto da ação “ecoou” episódios anteriores, em que o primeiro investigado apressadamente divulgou “como fatos certos o que eram especulações sem base idônea, sabidas inverdades ou conclusões desavindas do seu contexto”, em uma “linha de denúncia” que culminava em induzir uma “crença de que as tramas no sistema eleitoral se ordenaram a favorecer a candidatura da oposição”, destacando-se da referência ao ataque hacker ocorrido na rede do Tribunal Superior Eleitoral em 2018 que:
i.1) não foram abordados detalhes técnicos que indicavam que a invasão teve como alvo apenas sistemas administrativos e não era apta a forjar dados essenciais ao sistema de votação, apuração e totalização de votos, extraindo dos fatos conclusão que deles não se deduz;
i.2) insinuou-se que o Tribunal Superior Eleitoral tinha se negado a fornecer elementos cruciais à apuração da invasão, enquanto os elementos constantes do Inquérito Policial, ao qual o primeiro investigado teve pleno acesso, demonstravam que o TSE encaminhou à Polícia Federal logs relevantes para a investigação;
i.3) os pronunciamentos oficiais do Tribunal Superior Eleitoral quanto ao alcance da atuação do hacker foram distorcidos, afirmando-se falsamente que o TSE teria reconhecido que os sistemas de apuração e de totalização haviam sido invadidos e que os resultados das Eleições 2018 poderiam ter sido adulterados;
j) as distorções e inverdades repetidas pelo investigado Jair Bolsonaro por ocasião da reunião com os embaixadores e às insinuações de que a Justiça Eleitoral teria o intuito de beneficiar o candidato adversário influenciaram indevidamente parte do eleitorado a desconfiar do sistema eleitoral, o que se confirmou por fatos notórios, “alguns violentos, de inconformismo com os resultados das eleições presidenciais, em que se lhes atribuía a pecha de ilegítimos e fraudulentos”;
k) a tese de “ato de governo” não torna o ato insindicável pelo Poder Judiciário”, mesmo porque, no caso, “o aspecto de ato de Estado que se quis atribuir ao evento, na realidade, concorre para a caracterização da irregularidade”;
l) a prova documental indica que “o tema do voto impresso efetivamente ocupou a atenção do então postulante a novo mandato de Presidente da República desde bem antes das eleições”, sendo que o primeiro investigado, ao sustentar a “tese de que eleições corretas e legítimas seriam somente aquelas em que houvesse sistema de voto escrito paralelo ao digital”, associava conceitos como “eleições limpas” e “voto democrático e transparente” à existência do comprovante físico e imputava má-fé às pessoas que não endossassem sua visão;
m) “[o] discurso a autoridades diplomáticas estrangeiras, que pretendia também alcançar autoridades brasileiras e que se voltava a impressionar, à toda evidência, a população em geral, culmina com avisos sobre a iminência de fraude, sempre associada ao voto digital, indicando que o sistema vigente estaria disposto para forjar resultado eleitoral favorável ao candidato do partido de esquerda, que desde sempre despontava como o seu principal oponente”;
n) o prestígio e a imponência do cargo de Presidente da República, o teor do discurso e a proximidade cronológica com as eleições convergem, no evento de 18/07/2022, para “gerar impacto e a inquietar ânimos pessimistas com relação à legitimidade do pleito que já vinham sendo exasperados em outros pronunciamentos”;
o) “[o]bjetivamente, o discurso atacou as instituições eleitorais, e ao tempo que dava motivo para indisposição do eleitorado com o candidato adversário, que seria o beneficiário dos esquemas espúrios imaginados, atraía adesão à sua posição de candidato acossado pelas engrenagens obscuras do tipo de política a que ele seria estranho”;
p) sucedeu-se ao ajuizamento desta AIJE e mesmo às eleições “uma inédita mobilização de parcelas da população que rejeitavam aberta e publicamente o resultado do pleito, por não serem legítimas”, sendo notórios os acampamentos e manifestações que reuniram “pessoas convictas de que as eleições haviam sido fraudadas”, estando “ainda muito presentes e nítidas as imagens do dia 8 de janeiro último de destruição e de acintosa violência aos Poderes constituídos”, tudo a constituir “expressiva exposição” da gravidade do discurso contra a confiabilidade do sistema de votação eletrônica;
q) as questões procedimentais suscitadas nas alegações finais já foram objeto de decisões do Relator ratificadas por unanimidade em Plenário;
r) a conclusão pela configuração do abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação, a acarretar a inelegibilidade do primeiro investigado, não atrita com manifestação da Procuradoria-Geral da República, perante o STF, no sentido de não estar configurada conduta criminal em decorrência do discurso; e
s) ausente discussão acerca da participação do segundo investigado, candidato a Vice-Presidência, nos atos abusivos, a ação deve ser julgada improcedente em relação a ele.
Posteriormente à apresentação do parecer ministerial, os investigados requereram que fosse reconsiderada a determinação de sigilo aposto àquele e às alegações finais, a fim de que as manifestações fossem submetidas ao “escrutínio público” e, ainda, afirmando que teria ocorrido “vazamento ilegal” dos conteúdos sigilosos (ID 15893317).
Nada houve a prover em relação ao requerimento, tendo em vista que o fundamento da determinação (feita a partir de provocação dos próprios investigados) era evitar que a publicidade das alegações finais e do parecer – peças que, por sua natureza, discutem as provas produzidas na instrução – permitissem, por via transversa, a exposição pública do teor de informações que estão reservadas ao conhecimento das partes, do MPE e do juízo até o julgamento do processo. Ressaltou-se, mais uma vez, o dever de todos os sujeitos processuais agirem em conformidade a esse objetivo, o que, conforme já indicado, não impede a divulgação pública de argumentos apresentados pelas partes e pelo Ministério Público (ID 158934588).
As providências relativas ao sigilo foram cumpridas de forma escorreita e célere pela Secretaria Judiciária, estando certificadas nos IDs 158914542, 158917702 e 158931203.
Na sequência, proferiu-se decisão de inadmissibilidade da intervenção de terceiro como amicus curiae, modalidade incabível na espécie e que, no caso, fora apresentada por quem expressamente declarou que seus “argumentos” – a saber: uma “fábula escrita a duas mãos com o ChatGPT” – “podem não ser os melhores”. Tendo em vista a inadequação formal, jurídica e de linguagem da manifestação, confessadamente sabida pelo peticionário – advogado que se utilizou da capacidade postulatória no PJe para conduta incompatível com as prerrogativas da profissão – determinei o desentranhamento da peça e apliquei ao peticionário multa por litigância de má-fé, equivalente a dois salários mínimos, a ser redobrada em caso de reincidência em conduta temerária (ID 158938227).
Consigna-se ainda que foi encartado aos autos, por iniciativa dos investigados, petição denominada “recurso extraordinário”, dirigido contra o acórdão de ID 158704139, em que a Corte referendou a decisão que admitiu documento novo e fato superveniente. A petição é formalmente endereçada ao Ministro Alexandre de Moraes, Presidente do TSE, ao qual se requer “após a colheita de contrarrazões e admitido o inconformismo ora manifestado, sejam os autos encaminhados ao C. STF para competente julgamento” (ID 158764011).
Registra-se por fim que, em atenção aos fundamentos da aposição de sigilo às alegações finas e ao parecer do Ministério Público Eleitoral, não foram incluídas neste relatório trechos literais das transcrições de depoimentos e de documentos sigilosos, os quais constaram das três peças referidas, sem prejuízo de se apresentar as conclusões do autor, dos réus e da Procuradoria-Geral Eleitoral acerca da força probante do material produzido ao longo da instrução.
É o relatório.
Remeta-se o feito à Presidência, solicitando-se inclusão em pauta.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 1º de junho de 2023.
Ministro BENEDITO GONÇALVES
Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral
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